sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Diz a ela

                                                                                                    
 Vai e diz a ela as minhas penas e que eu peço
Peço apenas
Que ela lembre as nossas horas de poesia

Vinicius de Moraes e Edu Lobo

Diz que eu estive por pouco
Diz a ela que estou louco
Pra perdoar
Vinicius de Moraes e Chico Buarque

Diz a ela
Que estou completamente
Em destroços, e armas químicas já
Foram jogadas sobre minhas
Crianças

Diz que me viu
Tão inexistente que se não
Fosse a minha singular
Camisa desbotada não teria me visto.

Vai e diz
Que ando bebendo antes do café
E que perdi toda minha fé
Em Deus e na poesia
E que a minha única alegria
Está congelada em uma fotografia

Vai e diz
- Desculpe, mas não sou moleque de recado.



quarta-feira, 17 de julho de 2013

A VIDA PERFEITA DE MÁRIO FAUSTINO



Mário Faustino


Ainda bem que Mario Faustino era amado pelos deuses e cedo foi levado. A morte prematura nos ressente por tudo que interrompe. E causa ainda mais revolta quando ocorrida na vida de alguém tão prolífico quanto Mario Faustino. E se quisermos aumentar o ressentimento acrescente-se: alguém tão talentoso e provido de espantosa ambição intelectual. Mas no caso de Mario não existe ressentimento, pelo contrário, a morte de Mário pode ser contabilizada como mais um de seus inúmeros méritos. Lembremos: não houve morte. Mario foi levado, resgatado em pleno ar, as explosões e o intenso fogo que derreteram cadáveres e ferragens do avião, foram meros disfarces para que sua passagem para o tempo da perenidade fosse completa. Mário Faustino foi apenas recolhido ao tempo inconsumível: “a serpente tritura a própria cauda, /O circulo de fogo se devora, / Arrasta-se o cadáver bem ferido/ Para fora do palco”. Isto mesmo: retirado para fora do palco o cadáver, o corpo: o grande empecilho para que a poesia e o ritmo atemporal, substâncias da vida, atinja a perfeição: “que afinal compreendo: toda vida/ é perfeita. E pungente, e raro, e breve/ é o tempo que me dão para viver-me”. Por isso a morte para Mário Faustino era desejada: não era vista como antagônica da vida, pois a morte completa e atribui sentido para vida, lhe organiza um sentido, e ao fazer isso, a morte traslada a vida para o tempo da linguagem.
E uma vez integrada à linguagem, a vida não pode ser mais ameaçada, de fato se quisermos desenvolver um conceito secularizado de vida eterna só temos praticamente esta alternativa, isto é, a vida só se torna eterna na linguagem: a única forma de salvar a alma é convertendo-se em poesia. Por isso a certeza da morte, ou melhor, a certeza da morte ainda jovem não amedronta e não interfere nos planos de Mario. Tanto que, Aquiles e Jesus são evocados recorrentemente na poesia de Mário Faustino, como exemplos de heróis que souberam de antemão sobre sua morte prematura, mas isso não só foi suficiente para detê-los como era parte essencial para que os destinos de ambos se tornassem signos de eternidade. Com isso, os presságios de morte não fazem os heróis recuarem, e sim lhes intensificam a coragem de renunciar a uma materialidade passageira em nome da perfeição. Isto pode soar demasiadamente platônico. Mas avisamos que todos os signos místicos e religiosos na poesia de Faustino são secularizados: transformados em metalinguagem, neste caso, mitos cristãos e pagãos, e mesmo teorias que soam bastante platônicas podem ser interpretadas como um projeto poético de Mário. Assim, a vida orgânica é algo a ser superado para se conseguir a plenitude (Platão): a partida de Aquiles para morte certa na guerra de Tróia, mesmo depois de ter sido avisado por sua mãe, a fim de conseguir a glória e a eternidade; e ainda: Jesus que aceita ser crucificado para garantir o direito à salvação aos mortais, a vida eterna; enfim, figuras mitológicas que saltaram do tempo presentificado (enquanto medida, histórico) para o tempo do mito (cíclico, o tempo da linguagem, da sintaxe eterna), sendo elas retomadas no projeto de Mario como metáfora da capacidade da poesia de transformar tudo que é passageiro em eternidade.
E esse projeto não só existiu literalmente como ocupou os últimos anos de vida de Mário Faustino. E sobre este Projeto Benedito Nunes, pensador inclassificável e amigo de Mário, dedica dois artigos: “O projeto de Mario Faustino” e “Introdução ao Fim”. Depois da sua estréia em livro, com O homem e sua hora, Mario planejava publicar um segundo chamado A reconstrução, mas logo descartou essa ideia em nome de um projeto-poema, a semelhança de Mallarmé, que lhe ocupasse toda a vida, o livro seria escrito ao longo dela e lhe emprestaria coerência: este longo poema condensaria sua experiência de vida e se estenderia indefinidamente até sua morte, como destaca o próprio Mario em carta a Benedito Nunes “com ele (poema-projeto) poesia e vida minha deverão seguir paralelas, até que a morte nos separe”. Não só paralelas, como comenta Nunes, mas entrelaçadas: “o que o poeta visava alcançar era o entrelaçamento da vida com a poesia, a produção de uma por outra, de tal modo que a poesia se tornasse uma espécie de ação contínua de sua vida[1]”. Poderíamos dizer mais: Mario Faustino planejava pouco a pouco transferir a existência corpórea para existência linguística, se convertendo em seu poema, Mário não desapareceria por ter existido: a mortalidade não lhe reteria no esquecimento, pois este saltaria para a perfeição e completude da vida-linguagem:
Vida toda linguagem,
Vida sempre perfeita,
Imperfeitos somente os vocábulos mortos
Com que um homem jovem, nos terraços do inverno,
                                                  [contra a chuva,
Tenta fazê-la eterna – como lhe faltasse
Outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
                      língua
                                 eterna.  
A língua fornece a sintaxe imortal à vida, pois cria um sentido para a sua gratuidade, o simples transcorrer da vida torna a longevidade um vocábulo morto, somente a intensidade da palavra poética torna apreensível o verdadeiro tempo vivido. A vida é perfeita enquanto tempo fixado na palavra: as lembranças submersas no caos só se tornam legíveis quando recriada pela linguagem. Por isso, a brevidade da vida orgânica não ameaça a eternidade da “vida toda linguagem”, ao contrário, o corpo deve ser retirado de cena para que a poesia permaneça: D. Sebastião e Jesus Cristo mantiveram  penosamente o corpo, e depois se desfizeram dele para penetrar a dimensão imperecível do tempo mitológico. Ambos morreram jovens, enquanto viveram também tiveram em paralelo à vida corpórea a presença ininterrupta do verbo ancestral, oriundo da religiosidade intensa de D. Sebastião, e no caso de Jesus, Ele mesmo o próprio verbo encarnada. Não é ocasional que os fragmentos que fariam parte do projeto-poema que deveriam cobrir toda sua vida retomam a imagem de Cristo e D. Sebastião, estas duas figuras mitológicas conseguiram em pouco tempo de vida orgânica se projetarem eternamente para além do tempo circunstancial da “vida terrena”. Temos, então, um paradoxo que relativiza o quantitativo e o qualitativo. De fato, Mario Faustino planejava escrever um poema longo, e repetiu mais de uma vez que em arte o quantitativo (o tamanho) é essencial, mas isso não está ligado a questões meramente extensivas, ao contrário, seus poemas tendiam cada vez para a condensação ideogramática, os fragmentos que restaram do seu longo poema em progresso mostram que este seria composto de pequenos instantâneos, que deveriam ser montados seguindo a técnica cinematográfica inspirada no cineasta russo Eisenstein. Assim, a extensão ficaria garantida pela potencialidade de projeção que esses fragmentos pudessem suscitar:
(...) a extensão e a duração do poema se confundiriam, não dependendo dos anos que o autor pudesse viver, mas da intensidade com que ele vivesse qualquer prazo, curto ou longo, de existência. O essencial é que a extensão, qualificada pela continuidade de um movimento ininterrupto, se tornasse intensiva, e que o tamanho da composição estivesse subordinado sempre ao grau de elaboração artística que a experiência do poeta alcançaria.[2]   

Deste modo, o poema que deveria cobrir toda a vida do poeta não precisaria ser necessariamente longo formalmente, mas qualitativamente, a extensão corporal do poema teria que ser intensificada pelo seu potencial estético.  Com isso o resultado condensado dos fragmentos é desproporcional em relação à extensão temporal do trabalho de confecção, essa afirmação pode ser aparentemente óbvia: o tempo da leitura e do fazer são logicamente inconciliáveis, mas de certa forma essa constatação óbvia desaparece temporariamente na cabeça do leitor, o que leva muitas vezes a atribuir ao poeta uma escrita extática: o êxtase e a instantaneidade da leitura são estendidos ao fazer poético, disso surge a fantasia, por parte do leitor, da escrita inspirada e automática.  Mas, no caso de Mário o tempo da criação não era meramente desproporcional, mas simplesmente ininterrupto: “tento fazer em poesia aquilo que em mística os santos chamam de oração contínua”. Deste modo, Mário Faustino seguia o princípio rilkeano de que a escrita de um simples verso necessita da experiência de uma vida inteira para ser concretizado, algo retomado por Blanchot nesta passagem:
Para escrever um único verso, é necessário ter esgotado toda a vida. Depois, a outra resposta: para escrever um só verso, é preciso ter esgotado a arte, ter esgotado a vida na busca da arte. Essas duas respostas possuem em comum a ideia de que a arte é experiência, porque é uma pesquisa, não indeterminada mas determinada por sua indeterminação...[3]  

A poesia é experiência, mas esta experiência não decorre do período de vivência sobre a terra, não se trata da experiência enquanto acúmulo de situações vividas e transformadas em referência, mas do nível de consciência sobre nossa indeterminação: ela potencializa o grau de contato com o Ser, ao nos remeter ao limite. Assim a poesia é resultado da experiência porque antes de tudo ela nos põe conscientes da nossa duração: adensa qualitativamente o tempo vivido, nos dano sua real medida, e não apenas a medida do tempo cronologicamente acumulado sobre a terra. Ou como Mário Faustino diz nesta passagem comentada por Nunes:
Deste modo, os poemas que ele nos legou, como penhor do poema maior que pretendia realizar, não são fragmentos de uma vida ao sabor da corrente do tempo, mas apoios de que a sua existência necessitou para transpor essa corrente e para, dominando-a, expandir-se e crescer. “Essa montagem, dizia ele ( Mario Faustino), ao mesmo tempo que dará ordem, harmonia à minha poesia, organizará de certo modo a minha vida, uma refletindo a outra, ou melhor, reflexando a outra. [4]
Assim a poesia e vida se aprimoram conjuntamente. E viver ininterruptamente em poesia significa estar plenamente cônscio de seu limite, ou mesmo consciente de sua falta de estrutura: a poesia resulta da experiência porque ela cria a experiência, cria incessantemente novos obstáculos que prolongam a consciência da própria existência, além de lhe atribuir novas motivações e sentidos. Por isso, Mário Faustino dizia que a vida era perfeita, justamente porque ela é o tempo dado para se viver, ou melhor, ela o tempo dado para nos criar. E talvez ninguém tenha vivido melhor o tempo ofertado do que Mario, ou como bem comenta Walmir Ayala:
Nenhum ser, como o poeta, aproveita tanto da sua destinação mortal. Ele que constrói a perenidade do instante, e que geralmente ama a vida com um furor sagrado, é o mais envolvido neste tentáculo doce e passional, que transfigura cada palavra, que coloca um eco inesperado em cada gemido. Mário Faustino era isso, um deslumbrado pela vida, um bailador com a morte.[5]
Ante isso, não podemos dizer que a morte tenha interrompida a obra de Mario Faustino, nem sequer lamentar a vida que poderia ter sido e não foi; como se costuma fazer com poetas que apontavam para um futuro que não se cumpriu. Pois no caso de Mário Faustino tudo deu certo, inclusive sua morte. Como lembra Augusto de Campos: “o poeta apostou na sua destruição e acertou, conferindo o vaticínio dos seus poemas com a morte brusca em plena mocidade”[6]. Com efeito, as circunstâncias da morte de Mário ressignificou sua poesia e aumentou de maneira inextrincável a correspondência entre sua vida e seu projeto-poema, assim como D. Sebastião, sua morte sem cadáver libertou o verbo-mito até então refreada pela presença empírica, completando definitivamente seu traslado para a linguagem: “com o seu corpo anonimizado e irreconhecível – sua “vida, paixão e morte” – Mário Faustino identificou, tornou reconhecível a especificidade de sua mensagem poética no isomorfismo vida-obra que sempre perseguiu”[7] Não se trata do sensacionalismo da morte que aguça a curiosidade mórbida, que faz da obra uma mera coadjuvante. No caso de Mário Faustino, a morte, como uma espécie de performance mortal, ficcionaliza toda a vida, dilui todo o resquício factual, e com isso, Mário Faustino alcança a vida perfeita que menciona em seu poema “E nos irados olhos das bacantes”:
... mas saúdo
Em mim a minha paz final. Metade
Infame de homem beija os pés da outra
Diva metade, enquanto esta se curva
E retribui, humilde, a reverência.
A serpente tritura a própria cauda

O ciclo se completa quando a parte humana se encerra para se fundir ao fluxo ininterrupto da sintaxe do tempo mitológico. A vida de Mário Faustino foi perfeita porque a poesia intensificou seu tempo vivido de tal maneira que não houve sobra, a fusão entre vida e linguagem foi cirurgicamente exata, ao ponto de seu transplante para linguagem levantar dúvida sobre a existência real, o que nos faz perguntar, assim como os sebastianistas na ausência de um corpo, se ele a qualquer momento não voltará. Mas a diferença entre os leitores e admiradores de  Mário Faustino e os sebastianistas, é que a profecia de sua volta se cumpre diariamente, sempre que abrimos uma de suas obras.

REFERÊNCIAS:
AYALA, Walmir. Um depoimento: Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvallho. Tradição e modernidade em Mario Faustino. Belém: Gráfica e editora UFPA, 1986.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de janeiro: Rocco, 2011.
CHAVES, Albeniza de Carvalho. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Belém: Gráfica e editora UFPA, 1986.
CAMPOS, Augusto. Mario Faustino, o último “verse maker”-2. IN CHAVES, Albeniza de Carvalho. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Belém: Gráfica e editora UFPA, 1986.
FAUSTINO, Mario. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 
NUNES, Benedito. Introdução ao fim. In: CHAVES, Albeniza de Carvallho. Tradição e modernidade em Mario Faustino. Belém: Gráfica e editora UFPA, 1986.

Notas




[1] NUNES, Benedito. Introdução ao fim.  p.322.
[2] NUNES, Benedito. Introdução ao fim, idem.
[3] BLANCHOT, Maurice. A morte possível.  p. 91.
[4] NUNES, Benedito. Idem, p. 323.
[5] AYALA, Walmir. Um depoimento: Mário Faustino. Idem, p. 301.
[6] CAMPOS, Augusto. Mario Faustino, o último “verse maker”-2. Idem, p.131.
[7] Idem,p.332.

domingo, 26 de maio de 2013

VESTIBULAR


Ele e ela saíram do ônibus e pisaram no norte do país. Imediatamente a luz úmida da tarde abafada fulminou seus miolos. Depois de alguns passos as roupas estavam molhadas e um calor gosmento impregnava as dobradiças do corpo. Viajaram três dias por estradas esburacadas. E além de suportarem os inconvenientes naturais: cabelos desgrenhados e duros, hálito mortal, axilas coladas e barriga desregulada, suportaram ainda, sentados lado a lado, um silêncio constrangedor. Eles que eram loquazes amigos há três anos.
A amizade deles terminou na rodoviária. Ele foi levar a amiga até lá, para que se cumprisse o ritual de lágrimas. O amigo não chorou, não parecia sofrer, e a consolava sem convicção. Mas a frieza era apenas para dar relevo à surpresa: foi até o guarda-volumes e apanhou sua mala. A separação lhe renderia mais que uma despedida regada de lágrimas e abraços, lhe destruiria completamente, não saberia como concluir um dia sem vê-la, ou falar com ela. Ela parou de chorar e ficou séria. Um rosto ríspido e silencioso ocupou o lugar da amiga terna e precocemente saudosa. E então ele percebeu que era um idiota, e ela uma vadia. E tudo isso em um segundo. 
Protagonizaram uma rotina de namorados, mas sem beijo e sexo. Eram inseparáveis. Estudavam em uma escola de bastante prestígio. Como a escola mantinha uma longa fila de espera, ainda se permitia a extravagância de reprovar impiedosamente quem não atingisse a média. Que era acima da média quando comparada com outras escolas. Assim, se manter na escola conferia status. O próprio uniforme tinha a resplandescência dos objetos de luxo. Havia toda uma política de chantagem e recompensas, em torno do esforço para manter a média. Alguns pais chegavam a oferecer aos filhos altas quantias por cada nota na média ou acima da média. Mas a maioria era atormentada apenas com ameaças e recompensas normais. De qualquer forma, um típico contexto em que uma menina “burrinha” (ela mesma se denominava assim: “amigo, por que eu sou tão burrinha?” perguntava ternamente quando queria acalmá-lo) depende diretamente de um garoto inteligente. Ela era linda, e recebeu com cinco anos de antecedência um corpo com a exuberância que algumas só conquistam depois de muita insistência aos vinte. Ele era normal em termos estéticos, porém, uma figura lendária no cenário da escola: todas as notas eram acima da média. 
Na verdade, ela não era “burrinha”, mas bloqueada. A mãe morreu quando ela tinha nove anos, o pai, um fazendeiro bem-sucedido e brutamente gaúcho, aproveitou o seu proposital exílio rural para mandar os filhos para o sudeste sob o argumento que lá teriam uma educação da melhor qualidade. Ela nunca se recuperou do vácuo paterno, e como o irmão não preenchia este vácuo, desenvolveu uma atração por homens velhos, calvos e barrigudos.  Aos quinze se envolveu com um médico de trinta, seu primeiro ginecologista, ele tinha precoces entradas alongando a testa, isso a excitou. E o constrangimento de tirar a roupa, mesmo ante a enfermeira indiferente, liberou um raio de desejo que perfurou a frágil ética do médico. Ele, embaraçado, tentou encobrir a luz pulsante da nudez com uma camisola opaca. Mas as faíscas de nudez que escapavam do camisolão feriam ainda mais. A penetração dos dedos enluvados curiosamente não excitou nenhum dos dois. Aliás, penetrá-la em condições plenamente sexuais não era simples. O médico em questão só conseguiu parcialmente. Ficaram uns seis meses trocando discretamente amassos em locais públicos, precisamente no carro. Ela nunca aceitou o convite de subir ao apartamento. E eles não poderiam ir a um motel. A penetração ocorreu em um fim de expediente, no seu consultório. Em determinado momento temeu por consequências drásticas. Um impulso que veio da memória, mas que evitou se apresentar em forma de imagem, lhe fez empurrar o médico e nunca mais querer vê-lo.
Por algum motivo não se sentiu segura. Nunca se sentiu desde que a soltaram. Primeiro sua mãe, que lhe soltou em plena infância ao lado de um pai já com seus cinquenta. Depois o pai a soltou ao lado do irmão que nunca a segurou. Sonhava sempre abraçando o pai durante horas. Suas mãos firmes e envelhecidas lhe apertando, afagando os cabelos lisos e dourados. O irmão aos vinte e cinco se efetivou como executivo de uma empresa em ascensão. Torturava a irmã com aquela linguagem imbecil de motivação e perseverança. Pontificava insistentemente a base da auto-ajuda-executiva em seus ouvidos e fiscalizava obsessivamente as notas dela. Diante de qualquer nota mediana pontificava mais agressivamente, durante vários minutos, as máximas que guiavam sua vida. Depois o pior: ligava para o pai, contava que ela estava fracassando, sendo indisciplinada. Passava o telefone para ela e o pai laconicamente dizia: obedeça seu irmão e não me decepcione. Pronto. Passou a ter asco da juventude do irmão, de sua precocidade, de suas metas: ganhar um milhão aos vinte e sete, ocupar o cargo tal aos vinte e oito. E diante de uma avaliação, bloqueava. Aos dezesseis conheceu o chefe do irmão. Quis abraçá-lo de imediato, sentar em seu colo. Era velho e autoritário. Um dia sentou em seu colo de brincadeira, mas ele passou seriamente a mão em seus seios. Ela sentiu uma sensação de segurança e extremo prazer. Assim durante algum tempo sua vida sexual se resumiu, com exceções pontuais, basicamente a ser acariciada pelo velho. Sempre na mesma posição: ela no colo dele, ele com a mão cada vez mais ousada. 
                                     
Ele não disfarçava seu asco. Ela começou a chorar, mas já chorou demais na frente dele. Foram três anos de choro constante, por isso, suas lágrimas estão desmoralizadas. Tudo indica que sempre teve o pleno controle de suas lágrimas, e as usava calculadamente quando percebia uma hesitação da parte dele. A hesitação era justificada, ele correu riscos reais por ela. Sendo um bolsista da escola não poderia se envolver em algo ilícito. O que fizeram do ponto de vista rigoroso da escola era ilícito. No primeiro bimestre do primeiro ano do ensino-médio ela tirou notas lamentáveis. Completamente insuficientes para mantê-la na escola.
Transpirando, famintos, e ávidos por um banho, andavam a esmo pela cidade empoeirada. Cidade que parecia está sendo construída naquele exato momento. Quem poderia supor que estavam realizando um sonho? Mas planejaram este momento inúmeras vezes. Evidentemente percebeu que ela fingia no momento que apresentou sua mala pronta para viagem. A relação deles era uma amizade tensa, com um sistema de exclusividade que exigia tanto um do outro, que imaginaram uma cidade distante onde viveriam uma amizade desobrigada, ou subiriam um degrau a mais na escala afetiva. Ao menos foram esses os sinais que ela lhe enviou quando o cansaço machucava. Quando explicitava que se submetia ao sacrifício por desejo e amor. Ela ambiguamente adiava a possibilidade para um futuro e para outra geografia. Alegando que vivia a abstinência tanto quanto ele. E assim, o desejo era perigosamente acumulado. Enquanto isso, contatos intermediários eram travados: a exposição constante de sua intimidade feminina, raios de nudez revelados em arquitetadas distrações, mãos que se esqueciam em lugares estratégicos. Provavelmente contava com um blefe dele: por que viria para o interior do norte do país para fugir da concorrência? Já ela necessariamente teria que fazê-lo. E mesmo com a ajuda dele passou raspando para fisioterapia justamente na universidade federal que oferecia a menor concorrência. Mas para uma bloqueada isso era um sonho improvável que se realizava.

Numa última tentativa praticamente se ajoelhou pedindo que compreendesse. Ele a cortou com uma palavra cortante: vadia. Instantaneamente suas lágrimas secaram e o orgulho suspenso durante três anos voltou ao sangue. Segurou firme a mão dele e lhe puxou para o hotelzinho logo à frente. Pediu um quarto com convicção. Subiu as escadas ainda lhe puxando pelo braço. No quarto tirou toda a roupa sem sensualidade, deitou na cama, virou o rosto para o lado e esperou. Ele contemplou por alguns segundos o corpo nu esperando imóvel e não hesitou: segurou violentamente os seios volumosos, enfiou o nariz entre suas coxas, sugando o molhinho especialmente salgado pela falta de água. Afastou as pernas para iniciar a viagem cega. Gozou ostensivamente dentro. Pôs o corpo dela de costas e iniciou, por um caminho mais íngreme, outra viagem, com movimentos freneticamente agressivos. Desta vez gozou sobre sua bunda. Foi ao banheiro, tomou um banho. Pegou a única muda de roupa que trouxe na mala, e se trocou. Ao sair do banheiro a encontrou ainda na mesma posição. Na rua pegou o primeiro táxi para a rodoviária. Não poderia perder tempo, a matrícula seria nos próximos quatro dias. E havia sido o primeiro colocado no curso de maior concorrência da maior universidade do país. 

O VALE DA DESTRUIÇÃO

Eu andei no vale da morte e só encontrei destruição. A morte perdeu a piedade por nós e nos abandonou para apodrecermos em v...