domingo, 26 de maio de 2013

VESTIBULAR


Ele e ela saíram do ônibus e pisaram no norte do país. Imediatamente a luz úmida da tarde abafada fulminou seus miolos. Depois de alguns passos as roupas estavam molhadas e um calor gosmento impregnava as dobradiças do corpo. Viajaram três dias por estradas esburacadas. E além de suportarem os inconvenientes naturais: cabelos desgrenhados e duros, hálito mortal, axilas coladas e barriga desregulada, suportaram ainda, sentados lado a lado, um silêncio constrangedor. Eles que eram loquazes amigos há três anos.
A amizade deles terminou na rodoviária. Ele foi levar a amiga até lá, para que se cumprisse o ritual de lágrimas. O amigo não chorou, não parecia sofrer, e a consolava sem convicção. Mas a frieza era apenas para dar relevo à surpresa: foi até o guarda-volumes e apanhou sua mala. A separação lhe renderia mais que uma despedida regada de lágrimas e abraços, lhe destruiria completamente, não saberia como concluir um dia sem vê-la, ou falar com ela. Ela parou de chorar e ficou séria. Um rosto ríspido e silencioso ocupou o lugar da amiga terna e precocemente saudosa. E então ele percebeu que era um idiota, e ela uma vadia. E tudo isso em um segundo. 
Protagonizaram uma rotina de namorados, mas sem beijo e sexo. Eram inseparáveis. Estudavam em uma escola de bastante prestígio. Como a escola mantinha uma longa fila de espera, ainda se permitia a extravagância de reprovar impiedosamente quem não atingisse a média. Que era acima da média quando comparada com outras escolas. Assim, se manter na escola conferia status. O próprio uniforme tinha a resplandescência dos objetos de luxo. Havia toda uma política de chantagem e recompensas, em torno do esforço para manter a média. Alguns pais chegavam a oferecer aos filhos altas quantias por cada nota na média ou acima da média. Mas a maioria era atormentada apenas com ameaças e recompensas normais. De qualquer forma, um típico contexto em que uma menina “burrinha” (ela mesma se denominava assim: “amigo, por que eu sou tão burrinha?” perguntava ternamente quando queria acalmá-lo) depende diretamente de um garoto inteligente. Ela era linda, e recebeu com cinco anos de antecedência um corpo com a exuberância que algumas só conquistam depois de muita insistência aos vinte. Ele era normal em termos estéticos, porém, uma figura lendária no cenário da escola: todas as notas eram acima da média. 
Na verdade, ela não era “burrinha”, mas bloqueada. A mãe morreu quando ela tinha nove anos, o pai, um fazendeiro bem-sucedido e brutamente gaúcho, aproveitou o seu proposital exílio rural para mandar os filhos para o sudeste sob o argumento que lá teriam uma educação da melhor qualidade. Ela nunca se recuperou do vácuo paterno, e como o irmão não preenchia este vácuo, desenvolveu uma atração por homens velhos, calvos e barrigudos.  Aos quinze se envolveu com um médico de trinta, seu primeiro ginecologista, ele tinha precoces entradas alongando a testa, isso a excitou. E o constrangimento de tirar a roupa, mesmo ante a enfermeira indiferente, liberou um raio de desejo que perfurou a frágil ética do médico. Ele, embaraçado, tentou encobrir a luz pulsante da nudez com uma camisola opaca. Mas as faíscas de nudez que escapavam do camisolão feriam ainda mais. A penetração dos dedos enluvados curiosamente não excitou nenhum dos dois. Aliás, penetrá-la em condições plenamente sexuais não era simples. O médico em questão só conseguiu parcialmente. Ficaram uns seis meses trocando discretamente amassos em locais públicos, precisamente no carro. Ela nunca aceitou o convite de subir ao apartamento. E eles não poderiam ir a um motel. A penetração ocorreu em um fim de expediente, no seu consultório. Em determinado momento temeu por consequências drásticas. Um impulso que veio da memória, mas que evitou se apresentar em forma de imagem, lhe fez empurrar o médico e nunca mais querer vê-lo.
Por algum motivo não se sentiu segura. Nunca se sentiu desde que a soltaram. Primeiro sua mãe, que lhe soltou em plena infância ao lado de um pai já com seus cinquenta. Depois o pai a soltou ao lado do irmão que nunca a segurou. Sonhava sempre abraçando o pai durante horas. Suas mãos firmes e envelhecidas lhe apertando, afagando os cabelos lisos e dourados. O irmão aos vinte e cinco se efetivou como executivo de uma empresa em ascensão. Torturava a irmã com aquela linguagem imbecil de motivação e perseverança. Pontificava insistentemente a base da auto-ajuda-executiva em seus ouvidos e fiscalizava obsessivamente as notas dela. Diante de qualquer nota mediana pontificava mais agressivamente, durante vários minutos, as máximas que guiavam sua vida. Depois o pior: ligava para o pai, contava que ela estava fracassando, sendo indisciplinada. Passava o telefone para ela e o pai laconicamente dizia: obedeça seu irmão e não me decepcione. Pronto. Passou a ter asco da juventude do irmão, de sua precocidade, de suas metas: ganhar um milhão aos vinte e sete, ocupar o cargo tal aos vinte e oito. E diante de uma avaliação, bloqueava. Aos dezesseis conheceu o chefe do irmão. Quis abraçá-lo de imediato, sentar em seu colo. Era velho e autoritário. Um dia sentou em seu colo de brincadeira, mas ele passou seriamente a mão em seus seios. Ela sentiu uma sensação de segurança e extremo prazer. Assim durante algum tempo sua vida sexual se resumiu, com exceções pontuais, basicamente a ser acariciada pelo velho. Sempre na mesma posição: ela no colo dele, ele com a mão cada vez mais ousada. 
                                     
Ele não disfarçava seu asco. Ela começou a chorar, mas já chorou demais na frente dele. Foram três anos de choro constante, por isso, suas lágrimas estão desmoralizadas. Tudo indica que sempre teve o pleno controle de suas lágrimas, e as usava calculadamente quando percebia uma hesitação da parte dele. A hesitação era justificada, ele correu riscos reais por ela. Sendo um bolsista da escola não poderia se envolver em algo ilícito. O que fizeram do ponto de vista rigoroso da escola era ilícito. No primeiro bimestre do primeiro ano do ensino-médio ela tirou notas lamentáveis. Completamente insuficientes para mantê-la na escola.
Transpirando, famintos, e ávidos por um banho, andavam a esmo pela cidade empoeirada. Cidade que parecia está sendo construída naquele exato momento. Quem poderia supor que estavam realizando um sonho? Mas planejaram este momento inúmeras vezes. Evidentemente percebeu que ela fingia no momento que apresentou sua mala pronta para viagem. A relação deles era uma amizade tensa, com um sistema de exclusividade que exigia tanto um do outro, que imaginaram uma cidade distante onde viveriam uma amizade desobrigada, ou subiriam um degrau a mais na escala afetiva. Ao menos foram esses os sinais que ela lhe enviou quando o cansaço machucava. Quando explicitava que se submetia ao sacrifício por desejo e amor. Ela ambiguamente adiava a possibilidade para um futuro e para outra geografia. Alegando que vivia a abstinência tanto quanto ele. E assim, o desejo era perigosamente acumulado. Enquanto isso, contatos intermediários eram travados: a exposição constante de sua intimidade feminina, raios de nudez revelados em arquitetadas distrações, mãos que se esqueciam em lugares estratégicos. Provavelmente contava com um blefe dele: por que viria para o interior do norte do país para fugir da concorrência? Já ela necessariamente teria que fazê-lo. E mesmo com a ajuda dele passou raspando para fisioterapia justamente na universidade federal que oferecia a menor concorrência. Mas para uma bloqueada isso era um sonho improvável que se realizava.

Numa última tentativa praticamente se ajoelhou pedindo que compreendesse. Ele a cortou com uma palavra cortante: vadia. Instantaneamente suas lágrimas secaram e o orgulho suspenso durante três anos voltou ao sangue. Segurou firme a mão dele e lhe puxou para o hotelzinho logo à frente. Pediu um quarto com convicção. Subiu as escadas ainda lhe puxando pelo braço. No quarto tirou toda a roupa sem sensualidade, deitou na cama, virou o rosto para o lado e esperou. Ele contemplou por alguns segundos o corpo nu esperando imóvel e não hesitou: segurou violentamente os seios volumosos, enfiou o nariz entre suas coxas, sugando o molhinho especialmente salgado pela falta de água. Afastou as pernas para iniciar a viagem cega. Gozou ostensivamente dentro. Pôs o corpo dela de costas e iniciou, por um caminho mais íngreme, outra viagem, com movimentos freneticamente agressivos. Desta vez gozou sobre sua bunda. Foi ao banheiro, tomou um banho. Pegou a única muda de roupa que trouxe na mala, e se trocou. Ao sair do banheiro a encontrou ainda na mesma posição. Na rua pegou o primeiro táxi para a rodoviária. Não poderia perder tempo, a matrícula seria nos próximos quatro dias. E havia sido o primeiro colocado no curso de maior concorrência da maior universidade do país. 

O VALE DA DESTRUIÇÃO

Eu andei no vale da morte e só encontrei destruição. A morte perdeu a piedade por nós e nos abandonou para apodrecermos em v...