Ainda
bem que Mario Faustino era amado pelos deuses e cedo foi levado. A morte prematura nos ressente por tudo que interrompe. E causa ainda mais revolta quando ocorrida na vida de alguém tão prolífico
quanto Mario Faustino. E se quisermos aumentar o ressentimento acrescente-se:
alguém tão talentoso e provido de espantosa ambição intelectual. Mas no caso de
Mario não existe ressentimento, pelo contrário, a morte de Mário pode ser
contabilizada como mais um de seus inúmeros méritos. Lembremos: não houve
morte. Mario foi levado, resgatado em pleno ar, as explosões e o intenso fogo
que derreteram cadáveres e ferragens do avião, foram meros disfarces para que
sua passagem para o tempo da perenidade fosse completa. Mário Faustino foi
apenas recolhido ao tempo inconsumível: “a serpente tritura a própria cauda, /O
circulo de fogo se devora, / Arrasta-se o cadáver bem ferido/ Para fora do
palco”. Isto mesmo: retirado para fora do palco o cadáver, o corpo: o grande
empecilho para que a poesia e o ritmo atemporal, substâncias da vida, atinja a
perfeição: “que afinal compreendo: toda
vida/ é perfeita. E pungente, e
raro, e breve/ é o tempo que me dão para viver-me”. Por isso a morte para Mário
Faustino era desejada: não era vista como antagônica da vida, pois a morte
completa e atribui sentido para vida, lhe organiza um sentido, e ao fazer isso,
a morte traslada a vida para o tempo da linguagem.
E
uma vez integrada à linguagem, a vida não pode ser mais ameaçada, de fato se
quisermos desenvolver um conceito secularizado de vida eterna só temos
praticamente esta alternativa, isto é, a vida só se torna eterna na linguagem:
a única forma de salvar a alma é convertendo-se em poesia. Por isso a certeza
da morte, ou melhor, a certeza da morte ainda jovem não amedronta e não
interfere nos planos de Mario. Tanto que, Aquiles e Jesus são evocados
recorrentemente na poesia de Mário Faustino, como exemplos de heróis que
souberam de antemão sobre sua morte prematura, mas isso não só foi suficiente
para detê-los como era parte essencial para que os destinos de ambos se
tornassem signos de eternidade. Com isso, os presságios de morte não fazem os
heróis recuarem, e sim lhes intensificam a coragem de renunciar a uma
materialidade passageira em nome da perfeição. Isto pode soar demasiadamente
platônico. Mas avisamos que todos os signos místicos e religiosos na poesia de
Faustino são secularizados: transformados em metalinguagem, neste caso, mitos
cristãos e pagãos, e mesmo teorias que soam bastante platônicas podem ser
interpretadas como um projeto poético de Mário. Assim, a vida orgânica é algo a
ser superado para se conseguir a plenitude (Platão): a partida de Aquiles para
morte certa na guerra de Tróia, mesmo depois de ter sido avisado por sua mãe, a
fim de conseguir a glória e a eternidade; e ainda: Jesus que aceita ser crucificado
para garantir o direito à salvação aos mortais, a vida eterna; enfim, figuras
mitológicas que saltaram do tempo presentificado (enquanto medida, histórico)
para o tempo do mito (cíclico, o tempo da linguagem, da sintaxe eterna), sendo elas retomadas no projeto de Mario como
metáfora da capacidade da poesia de transformar tudo que é passageiro em
eternidade.
E
esse projeto não só existiu literalmente como ocupou os últimos anos de vida de
Mário Faustino. E sobre este Projeto Benedito Nunes, pensador inclassificável e
amigo de Mário, dedica dois artigos: “O projeto de Mario Faustino” e
“Introdução ao Fim”. Depois da sua estréia em livro, com O homem e sua hora, Mario planejava publicar um segundo chamado A reconstrução, mas logo descartou essa
ideia em nome de um projeto-poema, a semelhança de Mallarmé, que lhe ocupasse
toda a vida, o livro seria escrito ao longo dela e lhe emprestaria coerência:
este longo poema condensaria sua experiência de vida e se estenderia
indefinidamente até sua morte, como destaca o próprio Mario em carta a Benedito
Nunes “com ele (poema-projeto) poesia e vida minha deverão seguir paralelas,
até que a morte nos separe”. Não só paralelas, como comenta Nunes, mas
entrelaçadas: “o que o poeta visava alcançar era o entrelaçamento da vida com a
poesia, a produção de uma por outra, de tal modo que a poesia se tornasse uma
espécie de ação contínua de sua vida[1]”.
Poderíamos dizer mais: Mario Faustino planejava pouco a pouco transferir a
existência corpórea para existência linguística, se convertendo em seu poema,
Mário não desapareceria por ter existido: a mortalidade não lhe reteria no
esquecimento, pois este saltaria para a perfeição e completude da
vida-linguagem:
Vida
toda linguagem,
Vida
sempre perfeita,
Imperfeitos
somente os vocábulos mortos
Com
que um homem jovem, nos terraços do inverno,
[contra a chuva,
Tenta
fazê-la eterna – como lhe faltasse
Outra,
imortal sintaxe
à
vida que é perfeita
língua
eterna.
A
língua fornece a sintaxe imortal à vida, pois cria um sentido para a sua
gratuidade, o simples transcorrer da vida torna a longevidade um vocábulo
morto, somente a intensidade da palavra poética torna apreensível o verdadeiro
tempo vivido. A vida é perfeita enquanto tempo fixado na palavra: as lembranças
submersas no caos só se tornam legíveis quando recriada pela linguagem. Por isso,
a brevidade da vida orgânica não ameaça a eternidade da “vida toda linguagem”,
ao contrário, o corpo deve ser retirado de cena para que a poesia permaneça: D.
Sebastião e Jesus Cristo mantiveram
penosamente o corpo, e depois se desfizeram dele para penetrar a
dimensão imperecível do tempo mitológico. Ambos morreram jovens, enquanto
viveram também tiveram em paralelo à vida corpórea a presença ininterrupta do verbo
ancestral, oriundo da religiosidade intensa de D. Sebastião, e no caso de
Jesus, Ele mesmo o próprio verbo encarnada. Não é ocasional que os fragmentos
que fariam parte do projeto-poema que deveriam cobrir toda sua vida retomam a
imagem de Cristo e D. Sebastião, estas duas figuras mitológicas conseguiram em
pouco tempo de vida orgânica se projetarem eternamente para além do tempo
circunstancial da “vida terrena”. Temos, então, um paradoxo que relativiza o
quantitativo e o qualitativo. De fato, Mario Faustino planejava escrever um
poema longo, e repetiu mais de uma vez que em arte o quantitativo (o tamanho) é
essencial, mas isso não está ligado a questões meramente extensivas, ao
contrário, seus poemas tendiam cada vez para a condensação ideogramática, os
fragmentos que restaram do seu longo poema em progresso mostram que este seria
composto de pequenos instantâneos, que deveriam ser montados seguindo a técnica
cinematográfica inspirada no cineasta russo Eisenstein. Assim, a extensão
ficaria garantida pela potencialidade de projeção que esses fragmentos pudessem
suscitar:
(...)
a extensão e a duração do poema se confundiriam, não dependendo dos anos que o
autor pudesse viver, mas da intensidade com que ele vivesse qualquer prazo,
curto ou longo, de existência. O essencial é que a extensão, qualificada pela
continuidade de um movimento ininterrupto, se tornasse intensiva, e que o
tamanho da composição estivesse subordinado sempre ao grau de elaboração
artística que a experiência do poeta alcançaria.[2]
Deste
modo, o poema que deveria cobrir toda a vida do poeta não precisaria ser
necessariamente longo formalmente, mas qualitativamente, a extensão corporal do
poema teria que ser intensificada pelo seu potencial estético. Com isso o resultado condensado dos
fragmentos é desproporcional em relação à extensão temporal do trabalho de
confecção, essa afirmação pode ser aparentemente óbvia: o tempo da leitura e do
fazer são logicamente inconciliáveis, mas de certa forma essa constatação óbvia
desaparece temporariamente na cabeça do leitor, o que leva muitas vezes a
atribuir ao poeta uma escrita extática: o êxtase e a instantaneidade da leitura
são estendidos ao fazer poético, disso surge a fantasia, por parte do leitor,
da escrita inspirada e automática. Mas,
no caso de Mário o tempo da criação não era meramente desproporcional, mas
simplesmente ininterrupto: “tento fazer em poesia aquilo que em mística os
santos chamam de oração contínua”. Deste modo, Mário Faustino seguia o princípio
rilkeano de que a escrita de um simples verso necessita da experiência de uma
vida inteira para ser concretizado, algo retomado por Blanchot nesta passagem:
Para
escrever um único verso, é necessário ter esgotado toda a vida. Depois, a outra
resposta: para escrever um só verso, é preciso ter esgotado a arte, ter
esgotado a vida na busca da arte. Essas duas respostas possuem em comum a ideia
de que a arte é experiência, porque é uma pesquisa, não indeterminada mas
determinada por sua indeterminação...[3]
A
poesia é experiência, mas esta experiência não decorre do período de vivência
sobre a terra, não se trata da experiência enquanto acúmulo de situações
vividas e transformadas em referência, mas do nível de consciência sobre nossa
indeterminação: ela potencializa o grau de contato com o Ser, ao nos remeter ao
limite. Assim a poesia é resultado da experiência porque antes de tudo ela nos põe
conscientes da nossa duração: adensa qualitativamente o tempo vivido, nos dano sua
real medida, e não apenas a medida do tempo cronologicamente acumulado sobre a
terra. Ou como Mário Faustino diz nesta passagem comentada por Nunes:
Deste
modo, os poemas que ele nos legou, como penhor do poema maior que pretendia
realizar, não são fragmentos de uma vida ao sabor da corrente do tempo, mas
apoios de que a sua existência necessitou para transpor essa corrente e para,
dominando-a, expandir-se e crescer. “Essa montagem, dizia ele ( Mario
Faustino), ao mesmo tempo que dará ordem, harmonia à minha poesia, organizará
de certo modo a minha vida, uma refletindo a outra, ou melhor, reflexando a
outra.
[4]
Assim
a poesia e vida se aprimoram conjuntamente. E viver ininterruptamente em poesia
significa estar plenamente cônscio de seu limite, ou mesmo consciente de sua
falta de estrutura: a poesia resulta da experiência porque ela cria a
experiência, cria incessantemente novos obstáculos que prolongam a consciência da
própria existência, além de lhe atribuir novas motivações e sentidos. Por isso,
Mário Faustino dizia que a vida era perfeita, justamente porque ela é o tempo
dado para se viver, ou melhor, ela o tempo dado para nos criar. E talvez
ninguém tenha vivido melhor o tempo ofertado do que Mario, ou como bem comenta
Walmir Ayala:
Nenhum
ser, como o poeta, aproveita tanto da sua destinação mortal. Ele que constrói a
perenidade do instante, e que geralmente ama a vida com um furor sagrado, é o
mais envolvido neste tentáculo doce e passional, que transfigura cada palavra,
que coloca um eco inesperado em cada gemido. Mário Faustino era isso, um
deslumbrado pela vida, um bailador com a morte.[5]
Ante isso, não podemos dizer que a morte tenha interrompida a obra de Mario Faustino,
nem sequer lamentar a vida que poderia ter sido e não foi; como se costuma
fazer com poetas que apontavam para um futuro que não se cumpriu. Pois no caso
de Mário Faustino tudo deu certo, inclusive sua morte. Como lembra Augusto de
Campos: “o poeta apostou na sua destruição e acertou, conferindo o vaticínio
dos seus poemas com a morte brusca em plena mocidade”[6].
Com efeito, as circunstâncias da morte de Mário ressignificou sua poesia e
aumentou de maneira inextrincável a correspondência entre sua vida e seu
projeto-poema, assim como D. Sebastião, sua morte sem cadáver libertou o
verbo-mito até então refreada pela presença empírica, completando
definitivamente seu traslado para a linguagem: “com o seu corpo anonimizado e
irreconhecível – sua “vida, paixão e morte” – Mário Faustino identificou,
tornou reconhecível a especificidade de sua mensagem poética no isomorfismo
vida-obra que sempre perseguiu”[7]
Não se trata do sensacionalismo da morte que aguça a curiosidade mórbida, que
faz da obra uma mera coadjuvante. No caso de Mário Faustino, a morte, como uma
espécie de performance mortal, ficcionaliza toda a vida, dilui todo o resquício
factual, e com isso, Mário Faustino alcança a vida perfeita que menciona em seu
poema “E nos irados olhos das bacantes”:
...
mas saúdo
Em
mim a minha paz final. Metade
Infame
de homem beija os pés da outra
Diva
metade, enquanto esta se curva
E
retribui, humilde, a reverência.
A
serpente tritura a própria cauda
O
ciclo se completa quando a parte humana se encerra para se fundir ao fluxo
ininterrupto da sintaxe do tempo mitológico. A vida de Mário Faustino foi
perfeita porque a poesia intensificou seu tempo vivido de tal maneira que não
houve sobra, a fusão entre vida e linguagem foi cirurgicamente exata, ao ponto
de seu transplante para linguagem levantar dúvida sobre a existência real, o que
nos faz perguntar, assim como os sebastianistas na ausência de um corpo, se ele a
qualquer momento não voltará. Mas a diferença entre os leitores e admiradores de Mário Faustino e os sebastianistas, é que a profecia de sua volta se cumpre
diariamente, sempre que abrimos uma de suas obras.
REFERÊNCIAS:
AYALA,
Walmir. Um depoimento: Mário Faustino. In: CHAVES, Albeniza de Carvallho. Tradição e modernidade em Mario Faustino.
Belém: Gráfica e editora UFPA, 1986.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de janeiro: Rocco, 2011.
CHAVES,
Albeniza de Carvalho. Tradição e
modernidade em Mário Faustino. Belém: Gráfica e editora UFPA, 1986.
CAMPOS,
Augusto. Mario Faustino, o último “verse maker”-2. IN CHAVES, Albeniza de
Carvalho. Tradição e modernidade em Mário
Faustino. Belém: Gráfica e editora UFPA, 1986.
FAUSTINO,
Mario. O homem e sua hora e outros poemas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
NUNES,
Benedito. Introdução ao fim. In: CHAVES, Albeniza de Carvallho. Tradição e modernidade em Mario Faustino.
Belém: Gráfica e editora UFPA, 1986.
Notas
[1]
NUNES, Benedito. Introdução
ao fim. p.322.
[2]
NUNES, Benedito. Introdução
ao fim, idem.
[3]
BLANCHOT, Maurice. A morte
possível. p. 91.
[4] NUNES, Benedito. Idem, p. 323.
[5]
AYALA, Walmir. Um depoimento: Mário Faustino. Idem, p. 301.
[6]
CAMPOS, Augusto. Mario Faustino, o último “verse maker”-2. Idem, p.131.
[7]
Idem,p.332.