sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O fundo do Poço

Quando estiver no fundo do poço
verifique se é possível conseguir
com flexível regularidade
refeições e água razoavelmente potável

verifique se existem redes subterrâneas
ligando o seu fundo do poço a outros fundos

pesquise a viabilidade de se conseguir destilados
por um custo ínfimo

vá vivendo

caso se passe meses ou anos
considere a possibilidade
do fundo do poço ser

seu novo lar.  

terça-feira, 8 de setembro de 2015


INFELIZMENTE ELA ME RECUSOU


Todo mundo conhece essa anedota vulgar:
Camões naufragando tendo que escolher
entre sua amada e o único exemplar
de Os lusíadas. Na tensão das correntezas
no sufoco que comprime o tempo. Parece
que Camões nem sequer hesitou. E por isso
temos Os Lusíadas. Eu deletaria todos os meus
poemas por você. Sem a premência das águas
nefastas, friamente eu o faria agora. E isso
só levaria alguns segundos, e me renderia
alguns gozos a mais. E pouparia você,

você mesmo aí:  disso. 

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Tanto jubilo! Tanto!
Se eu cair, que pobreza!
Pobres como eu, no entanto,
Tudo arriscaram num só lance!
Ganharam! Sim! Temendo embora –
Deste lado a Vitória!

Vida é só vida! E Morte, Morte!
Ar é Ar, e Alegria, Alegria!
E se eu cair, enfim,
É doce ao menos conhecer o ruim!
Perder não é mais que Perder,
Não há mais fim que o Fim!

Mas se eu ganhar! Canhões no Mar!
Sinos nas Torres, pelo ar
Ressoem lentamente!
O céu muito diferente
Quando sonhado; terra firme –
Poderia extinguir-me!


Emily Dickinson, trad, Augusto de Campos. 

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

 “Penso na morte e no céu, pois toda vez que penso na morte penso também nas estrelas.
Sinto-me muito pequeno ao lado do infinito e bem depressa abandono essas reflexões. Meu corpo quente, que vive, tranquiliza-me. Toco minha pele com amor. Ouço meu coração, mas evito colocar a mão sobre meu peito esquerdo pois não há nada que me assuste tanto como esse batimento regular, que não comando e que tão facilmente poderia parar. Movimento minhas articulações, e respiro melhor sentindo que não doem.
Ah! Solidão, que bela e triste coisa! Como é bela quando a escolhemos! Como é triste quando nos é imposta há anos!
Certos homens fortes não estão sós na solidão, mas eu, que sou fraco, estou só quando não tenho amigos”.

Emmanuel Bove, in Meus amigos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Amavelmente nomeado

Menino com cão-Picasso


Ele era maior que uma formiga e tinha um nome. Ele me pertencia: a vida dele ficou dentro da minha durante seis anos. Uma vez perguntei para minha mãe: por que ninguém chora quando uma formiga morre? Ela disse: uma formiga por ser muito pequena, fica longe dos olhos dos que podem chorar. Só os diariamente visíveis são capazes de cultivar afeição. Mas não basta ser grande suficiente para ser visto. Tem que pertencer a alguém. Não um pertencer anônimo: como os animais criados para serem abatidos, que são apenas numerados. Mas um pertencer amavelmente nomeado. Rique era maior que uma formiga e era diariamente nomeado e visto. Até o momento em que passou a ficar sempre de olhinhos fechados. Olhinhos que lacrimejavam remelas. Que só se abriam quando eu insistia em chamá-lo para brincar. Então ele abria os olhinhos por alguns segundos. E parecia pedir desculpa com um terno e lento fechar de pálpebras.


terça-feira, 4 de agosto de 2015









Anjo em pele de lobo


Anjos infiltrados foram pisoteados pelo
infindável cortejo de ovelhas. Outros
se disfarçaram em pele de lobo por medo.
Mas não desisti. Amargo uma solidão
sem anestesia. Sinto que suspeitam
do meu dom secreto. Na hora certa
vou usá-lo. A ira foi uma fraqueza.



quarta-feira, 29 de julho de 2015

Tédio pétreo

Nada mais debalde,
Sísifo, Tiziano
isso mesmo, debalde,
que dois indivíduos
interessados um no
outro, mas que
extremamente
entediados precisam
hiperbolizar
nas palavras, mas estando
distantes nem hipérbole
quebra o império
de pedra
que pesa nos rins
se próximos
transariam até não restar
pedra sobre
pedra, mas exaustos o tédio
se aliaria à hostilidade dos
corpos esvaziados, onde
cada palavra é uma pedra
lascada, e fere.
Dormindo
amanheceriam duros inertes
mas a pedra do tédio ao lado

espera.   

terça-feira, 28 de julho de 2015

Poeminha erótico

Ilustração de Pablo Picasso

                                   À Mel F.

Um pedacinho de ti
que em ti permanece
mas te enternece
ceder por alguns minutos
horas dias a mim
que se doa todo
por um pedacinho de ti
que eu possa escolher.


sexta-feira, 1 de maio de 2015



O PACTO AUTOBIOGRÁFICO: ALGUMAS QUESTÕES







                                                                                                     
A ascensão da Teoria Literária e seu desejo de autonomia levaram ao encerramento do conceito de texto literário em dimensões puramente intrínsecas. Algo perfeitamente compreensível quando contextualizamos que esta ambição partiu do esforço de transformar a Teoria Literária em uma ciência autônoma, tal como a Lingüística. Com base nesta premissa iniciou-se uma verdadeira caça ao “eu”, a fim de garantir uma pretensa cientificidade, de conservar uma imparcialidade e uma universalidade que hoje sabemos serem ilusórias.  Além disso, correntes de pensamento que tentavam ler e interpretar obras ficcionais a partir de elementos extrínsecos foram condenadas: uma delas a crítica autobiográfica que existe desde o século dezenove. Não podemos negar que o radicalismo de separar o texto do seu contexto cultural, autoral e social, para se limitar ao co-texto, à materialidade lingüística tenha gerado frutos. Gerou. Forneceu-nos um amplo suporte técnico de análise e aguçou nosso olhar crítico para detalhes substanciais do texto. Por outro lado, a manipulação apenas dos elementos intrínsecos do texto literário resultou em essencialismos. Na fé de que o texto vale por si, de que existe um substrato imutável que garante qualidade estética à obra literária. O efeito danoso disso é a crença na existência de uma hierarquia natural, que permite separar a boa e a má literatura com base na qualidade interna do texto. E no âmbito da teoria asseveraram-se os limites entre o fato e o ficcional, incentivando uma pureza metodológica e epistemológica.
Com o advento dos Estudos Culturais e outras correntes que privilegiam a chave do social e do cultural como válida para interpretar o texto literário, iniciou-se um movimento de abertura do texto, e da relativização de valores “substanciais e imobilistas”. Permitindo que disciplinas que valorizam a figura do escritor e do seu ambiente, caso da crítica genética e autobiográfica, retomassem a cena.   A respeito disso Eneida Maria de Souza diz:

Os limites provocados pela leitura de natureza textual, cujo foco se reduz à matéria literária e à sua especificidade, são equacionados em favor do exercício de ficcionalização da crítica, no qual o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção. A proliferação de práticas discursivas consideradas “extrínsecas” à literatura, como a cultura de massa, as biografias, os acontecimentos do cotidiano, além da imposição de leis regidas pelo mercado, representam uma das marcas da pós-modernidade, que traz para o interior da discussão atual, a democratização dos discursos e a quebra dos limites entre a chamada e alta e a cultura de massa. (SOUZA, 2002, pp. 111-112).

O que se sugere acima é a contaminação salutar entre o objeto literário e a teoria. O discurso teórico assume uma autoridade quando de posse de um objeto domesticável pela manipulação de elementos materiais, por isso, a preferência pela superfície lingüística, a soma e o rastreamento de dados costumam oferecer uma segurança empírica. E o empirismo ambiciona ser irrefutável. Há momentos em que as ciências humanas, e isso incluem a Teoria Literária, padecem da culpa de não serem exatas e passam a importar epistemologias aparentemente mais rigorosas e menos falíveis. Quando isso acontece a ficcionalização do teórico serve como um elemento modalizador. A arte relativiza a racionalidade intransigente da ciência, expande as fronteiras dos conceitos. Pois existe algo que só “o saber narrativo” pode comunicar. Ou continuando a dizer com Souza (2002): “o saber narrativo, ao retirar do discurso crítico o invólucro da ciência” passa a se concentrar “na permanente construção do objeto de análise”, colaborando para denunciar o caráter enunciativo do discurso da ciência.  Pois ao combinar a ficção e a teoria, “o teor documental” e “o simbólico” do objeto, ocorre a desautorização do sujeito totalizador da ciência, uma vez que a ficção localiza esferas da vida cotidiana, das pequenas histórias encobertas, da especificidade do local, do refugo, que não têm lugar nos grandes projetos especulativos e universalistas.
A desmistificação do factual, a inserção de um sujeito crítico que se admite parcial não significa perda de eficiência, pelo contrário, é exatamente para ganhar mais mobilidade e penetrar esferas de difícil acesso, que se divide o sujeito ilusoriamente integral em pequenas partes. Algo assim já era defendido por Walter Benjamin ao dizer que a verdade traz um lado esotérico, que o pensamento retilíneo não pode apreender. Por isso, inspirado em Goethe, foi um dos primeiros a defender a aproximação da ciência e da arte. A arte, com sua singularidade e complexidade, ajuda o sujeito analítico a penetrar a verdade que consiste na espessura, naquilo que escapa: na sobra, no que há de único e intraduzível de cada objeto. Desse modo, antes de ser apenas uma estetização da teoria, ou uma simples mudança de suporte: o conteúdo científico na forma atrativa do ficcional, ou o inverso, esta contaminação entre ficção e teoria é uma forma de atingir um patamar de conhecimento que ainda não se revelou. Ou melhor: não se trata de alternar textos literários que são meros invólucros de idéias com teorias que são esteticamente inteligíveis. O ideal é que essas fronteiras sejam diluídas, que as polaridades sejam abandonadas em nome de discursos suficientemente transdisciplinares, ao ponto de criarem novos locais de enunciação. 
Diante disso, as reações adotadas diante da tentativa de aproximar autobiografia e ficção, fatos e criação estética, são radicais, pois ou se tenta traduzir uma parte na outra, capturando o factual fidedignamente no campo narrativo, ou buscam-se os extremos: há os que não acreditam na verdade, e os que acreditam apenas na ficção. Como Philippe Lejeune diz:

Os primeiros estão convencidos de que o compromisso de dizer a verdade não tem nenhum sentido. Que é um engodo, no plano do conhecimento, e um erro, no plano da arte. Recorrem seja à psicologia (crítica da memória, ilusões da introspecção), seja à narratologia (toda narrativa é uma fabricação). Como se pode ainda, no século da psicanálise, acreditar que o sujeito seja capaz de dizer a verdade sobre si mesmo? A autobiografia perde em todos os campos: só consegue acumular deficiências. É uma ficção que se ignora, uma ficção ingênua ou hipócrita, que não tem consciência ou não aceita ser uma ficção, e que,  de outro lado, se sujeita a restrições absurdas que a privam dos recursos da criação, única possibilidade de se chegar à verdade. (LEJEUNE, 2008, p. 103)

Já os segundos são aqueles que não desprezam o autobiográfico, mas só  reconhecem seu valor quando este atinge formas gerais “que ajudem os leitores a estruturar sua identidade”, transcendendo o absolutamente pessoal. Apenas completamente transfigurado no mito e na literatura, o autobiográfico pode ser considerado.  Contrapondo-se ao primeiro argumento contra o autobiográfico, Lejeune advoga que o fato da base da identidade passar pela narrativa, por uma construção da linguagem, não anula a oposição verdade/mentira. Pois a promessa de dizer a verdade é constitutiva das relações humanas e cria “campos discursivos” que orientam a sociedade. A autobiografia, assim como outros campos discursivos, tenta alcançar a verdade, e essa ambição, já por si, estabelece um interesse diferenciado do leitor, pois, durante o tempo da leitura, a fé em que a verdade é acessível tem que ser alimentada e minimamente conferível factualmente. Afinal, já algum tempo sabemos que existe vida fora da linguagem. Talvez no nível ontológico a verdade, no sentido transcendental, não seja mesmo apreensível, mas na prática e nos atos que sustentam o cotidiano ela é indispensável. Para Lejeune, o fato de a identidade ser uma construção imaginária, e sermos indivíduos que se manifestam constantemente a partir de papéis ideológicos e discursivos, não nos dispensa de optarmos entre em estilizar esse imaginário ou simplificá-lo. Isto é, podemos deliberar sobre jogos de fingimento e explorar suas possibilidades improváveis na ficção, ou podemos prolongá-los sendo fiel a determinados campos discursivos, que mesmo não intencionando uma verdade singular e universal, ao menos seja fiel a verdades provisórias que sustentam nossa identidade.
Ao segundo argumento, de que a autobiografia se restringe muito ao individual, e por isso a ficção é bem mais eficiente para explorar o autobiográfico, Lejeune modaliza que não se deve ver a autobiografia como gênero condenado ao restrito, ao anedótico. Mesmo aquela “escrupulosamente preocupada com a verdade” pode alcançar a generalidade, um ideal arquetípico que permita angariar projeções e identificações de um maior número de leitores. A intensidade que o investimento estético dá ao autobiográfico, não obriga sua manifestação apenas pelo viés ficcional, para Lejeune isso cria inclusive um paradoxo: reivindica-se o valor autobiográfico, mas o nega no campo da realidade, fazendo com que o pacto autobiográfico fique fora da obra. Ou seja,  muitas vezes a obra autobiográfica se aproxima tanto do literário que se torna irreconhecível no nível do significante. Há nisso uma leve “superstição” de que o esteticamente trabalhado chega às zonas mais profundas do “eu”, e com isso, o autobiográfico que se veste com a ficção é mais “verdadeiro”: “o intenso parece ‘verdadeiro’, e o verdadeiro só pode ser autobiográfico”. (LEJEUNE, 2008, p. 106). A questão é complexa, e Lejeune não descarta a necessidade de se definir no mínimo dois tipos de autobiografias: um tipo direto e outro figurado.
Há também nessa discussão o temor de que o autobiográfico pressuponha  confissão, associado muitas vezes ao indiscreto. O que leva alguns a se apropriarem do pacto autobiográfico, mas não assumi-lo. Mas, segundo Silviano Santiago, é possível diferenciar o confessional e o autobiográfico, pois no confessional está em jogo a “expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica”. (SANTIAGO, 2008, p.174). Por isso, trabalha para reduzir a zero o confessional, mas sem dispensar o autobiográfico, pois para ele não interessa “mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam.” (SANTIAGO, 2008, p.175). Com isso Santiago busca a contaminação entre ficcional e autobiográfico, pois a inserção do autobiográfico no ficcional, de forma criativa e anárquica, gera uma tensão constante, que suspende os limites entre ambos, e abre novas possibilidades para o escritor. É claro que neste caso o ponto de partida para Santiago é a ficção, pois o depoimento é feito da perspectiva do ficcionista e não há uma preocupação mínima com a veracidade e o factual.
Mas no fim de tudo, a questão do ficcional versus autobiográfico se resolve no pacto. A questão talvez seja complexa porque há a tendência de se pensar que confrontar autobiografia e ficção seja o mesmo que confrontar: o documental, índices extratextuais, com o figurado. Mas estas instâncias são facilmente deslizantes, e se fixar nelas para explorar a relação ente literatura e autobiografia seria algo inócuo. Há de se ter fé no pacto, por mais que às vezes fiquemos tentados a rastrear indefinidamente marcas e mais índices fora e dentro do texto. No entanto, o próprio Lejeune um dia duvidou se somente o pacto era suficiente para estabelecer o autobiográfico: “Como pude dizer: ‘o pacto autobiográfico é necessário [mas] não é suficiente’. Necessário, obviamente: cabe ao autor declarar sua intenção, não ao leitor, fazer suposições.” (LEJEUNE, 2008, p. 75).  E à frente justifica porque chegou a duvidar do pacto: estava ofuscado com o fato de catalogar e levantar um corpus, em definir e localizar marcas explícitas de pacto autobiográfico que não percebeu “que o compromisso pode ser assumido de outra forma, de fato, implicitamente, pelo simples emprego do nome próprio”. (LEJEUNE, 2008, p. 75). Ou seja, o nome cruza o discurso com a pessoa, e dispensa a tarefa invencível de verificar se “as transcrições” extratextuais se realizam veridicamente no texto, e também dispensa a análise do funcionamento interno do texto. O pacto é acordado implicitamente e explicitamente com o leitor, a fim de posicioná-lo em sua abordagem, de direcioná-lo para determinado campo discursivo.
Assim, o autobiográfico não pode se prender a uma seqüência de fatos ligados a uma pessoa empírica no mundo.  Afinal, mesmo se esses fatos fossem verídicos, teríamos poucos recursos para comprová-los, com isso, a opinião última continuaria sendo a do autor-narrador.  Isto é, continuaria valendo o dilema de confiar ou não, de aceitar ou não o pacto. Dessa forma, a sinceridade deve ser uma promessa, mas sua efetivação é vivenciada pelo leitor no decorrer da leitura, é na coerência estilística que o leitor se sentirá à vontade ou não para embarcar naquela versão de realidade, de outro, e tomá-la como realidade para si. A respeito disso Wander Melo Miranda esclarece:

Apesar do aval de sinceridade, o conteúdo da narração autobiográfica pode perder-se na ficção, sem que nenhuma marca decisiva revele, de modo absoluto, essa  passagem, porquanto a qualidade original do estilo, ao privilegiar o ato de escrever, parece favorecer mais o caráter arbitrário da narração que a fidelidade estrita à reminiscência ou caráter documental do narrado. (MIRANDA, 1992, p. 30)
              
Mas mesmo se possível reconhecer alguma marca desta passagem, isso teria serventia? Pois provavelmente essa marca nos remeteria basicamente a outra ficção: a rede ficcional criada em torno do escritor. Ou como diz Souza (2002): “a figura do escritor substitui a do autor, a partir do momento que ele assume uma identidade mitológica, fantasmática e mediática”. (p.116). O escritor já é por si um personagem envolto em narrativas criadas em co-autoria entre mídia, público, leitor e o próprio escritor. O imaginário do leitor se esforça para preencher o espaço entre a obra e o autor. Este esforço aumenta quando parte de um escritor em potencial que procura modelos para se espelhar. E na tentativa de espelhar, reflete sua imagem além do espelho. A vida de um escritor, sua trajetória, em alguns casos pode ser tornar mais atrativa do que obra em si. E nos dias de hoje, com a necessidade de exposição na mídia, para atrair mais leitores, o autor se coloca constantemente como ator: exemplos radicais disso são as performances públicas de alguns escritores.
 Assim, os poucos traços autobiográficos reconhecíveis pelo leitor, intactos da passagem quase inevitável ao ficcional, não deixam de ser também, de alguma forma, ficcionais. E não estamos confundindo “narrativa com ficção”, como aconteceu em um primeiro momento com Lejeune: “me confundo ao associar a narrativa à ficção, erro grosseiro. Hoje sei que transformar sua vida em narrativa é simplesmente viver. Somos homens-narrativas. A ficção significa inventar algo diferente dessa vida.” (LEJEUNE, 2008, p. 74).  Na maioria das vezes a fabricação do escritor, se dá contra a identidade da pessoa do autor, sua autonarrativa. Narramo-nos freqüentemente, isso inclui uma parcela de invenção, porém, essa parcela não compromete nossa identidade, pelo contrário, ajuda a firmá-la, por isso, não é adequado chamá-la de ficção, uma vez que esta se inicia com o afastamento deliberado desta “ficção constitutiva” que nos mantém. No caso de alguns escritores, podemos dizer que há uma carga mínima de deliberação, ou ao menos autorização, para que se criem narrativas diferentes da  “narrativa de si”, entrando para o campo da invenção calculada. 
Mas até quando se inventar deliberadamente para determinado público leitor pode ser tolerado? Existe algo que regule eticamente isso? Tentar responder a estas perguntas ou mesmo levantá-las nos remeteria a uma espécie de ética do pacto. Acreditamos que essa ética do pacto ainda não foi sistematicamente formulada. Mas já podemos identificar algumas falas que desaprovam certos abusos do pacto autobiográfico.  

UMA ÉTICA DO PACTO?              

Lejeune, ao se referir ao uso constante pelo romance, um gênero de prestígio, do autobiográfico, um gênero que ainda sofre preconceitos, lança esta fala:

Usufruir dos benefícios do pacto autobiográfico sem pagar nenhum preço por isso pode ser uma conduta fácil, mas também exercícios irônicos plenos de virtuosismo ou abrir caminho para pesquisas das quais a autobiografia “autêntica” poderá tirar proveito. Mas os escritores que freqüentam essa zona, justamente porque estão sempre esbarrando na autobiografia, são os que mais violentamente a depreciam e a renegam: sobretudo que ninguém pense que eles a praticam! (LEJEUNE, 2008, p. 109).       

 O preconceito que ainda se tem em relação ao gênero autobiográfico leva alguns escritores a negligenciar os tributos éticos do pacto. Lejeune não condena a hibridização entre autobiografia e romance, apenas lamenta a violência com que se nega o autobiográfico. E alerta que a crença na supremacia do estético incentiva o abandono de outras responsabilidades: “na tríade o Belo, o Bem, o Verdadeiro, só o primeiro termo diz respeito ao escritor atual que pensa não ter obrigação de ser, em sua obra, nem moral, nem “verídico”, ou antes, ser tudo isso automaticamente pelo simples fato de ser belo.” (LEJEUNE, 2008, p.109). Ou seja, para Lejeune o autobiográfico toca fatalmente em “problemas éticos”, e no momento em que se junta literatura e autobiografia, não se deve simplesmente delegar um, em detrimento do outro, pelo contrário, o grande desafio é saber combinar os dois: o belo e o verdadeiro. Pois estes não são quesitos que se repelem, inclusive, houve um tempo em que o belo e a verdade eram inseparáveis. Logicamente não estamos defendendo um retrocesso: amarrar novamente o estético ao ético de modo intransigente. Aliás, achamos que a contaminação dos gêneros de um modo “anárquico e criativo” enriquece ambas as partes. Alertamos apenas para o despudor de uma fé formalista que tenta se isentar dos compromissos de inferência que o pacto exige. Ou melhor: atrai-se o leitor aliciando sua credulidade, a explora, depois foge sem pagar a fatura alegando ter feito tudo em nome da honra do estético. Não estamos dispensando o estético, mas evitando fazer hierarquia. Entendemos que opções estéticas são motivadas por critérios amplos, que inclui valores ideológicos e culturais, trazendo no conjunto a ética.
Talvez a complicação esteja no fato de alguns escritores e teóricos suplantarem contextos, para se encerrarem no absoluto do estético, por temor de considerá-lo mais um valor discursivo, que também passará. Um texto que ilustra bem isso é “O autor como produtor” de Walter Benjamin, na qual este não tem nenhum temor em dizer:  
Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre, o mesmo ocorrendo com as tragédias e as grandes epopéias. Nem sempre as formas do comentário, da tradução e mesmo da chamada falsificação tiveram um caráter literário marginal: elas ocuparam um lugar importante na Arábia e na China, não somente nos textos filosóficos como literários. Nem sempre a retórica foi uma forma insignificante: ela imprimiu seu selo em grandes províncias da literatura antiga. Lembro de tudo isso para transmitir-vos a idéia de que estamos no centro de um grande processo de fusão de formas literárias, no qual muitas oposições habituais poderiam perder sua força. (BENJAMIN, 1994, pp. 123-124)  

                       Antes deste excerto, Benjamin desenvolvia a relação entre tendência e qualidade. Que interessa muito para nossa discussão. Pois para ele a qualidade sem a tendência, não tem sentido. Ter qualidade tem a ver com a tendência correta, e vice e versa.  Pensar de outro modo seria retroceder à esterilidade de querer divisar forma e conteúdo. Pois as escolhas ideológicas já trazem as formas, na verdade, elas nem sequer poderiam ser apreendidas sem as formas, trata-se de algo indissociável: tanto que hoje o romance é altamente prestigiado, mas no século XVII era algo sem valor. Assim, ao dizer tendência “correta” pensamos que cada época traz suas técnicas narrativas próprias, porque mudanças técnicas pressupõem mudanças de idéias. Não se trata de engajamento, de subordinar uma forma a um conjunto ideológico e político específico. Mas apenas acreditamos que as idéias não circulam no vácuo, ou se manifestam por telepatia. Deste modo, é justo que determinados contextos culturais e históricos privilegiem campos discursivos que atendam melhor suas demandas de pensamento. Isso é algo inevitável e de algum modo irreversível. Como por exemplo: a literatura não tem mais os mesmo privilégios do século XIX, isso é lamentável para os que gostam de literatura, mas irreversível, ao menos por enquanto. Assim, quando os romancistas passam a adotar com bastante freqüência o pacto autobiográfico, mas o negam com  violência, temos um “problema ético” no sentido de que existe má fé. Ou melhor: o esbarrar constante no autobiográfico atende uma demanda de pensamento, alguns romancistas querem atendê-la e usufruírem dela sem contribuir com sua evolução discursiva.
O choque do autobiográfico com a ficção deveria ser encarado como uma oportunidade cada vez mais inevitável e necessária de estrear um novo campo discursivo. Mas, preferem encerrar tudo no estético. O motivo disso talvez seja a angústia: enfrentar a necessidade de fundar um novo campo discursivo significa sair do chão seguro de um gênero e se lançar à deriva.  Não nos lembramos de outro escritor que expressou tão bem essa angústia além de Truman Capote, que com seu A sangue frio estreou um campo discursivo, mas é em Música para camaleões que expressa sua angústia resultante dessa atitude, ao usar a célebre metáfora do chicote: Deus, ao nos dar um talento, também nos deu um chicote. Não usar o chicote, neste caso, é evitar problematizar as implicações decorrentes do amalgamar entre literatura e autobiografia. Neste ponto podemos lembrar Silviano Santiago que, ao falar de sua experiência como escritor, afirma nunca ter evitado “a contaminação” do ficcional e autobiográfico, mas, em compensação, nunca se permitiu usá-la de modo acrítico, não caindo no confessional. Insatisfação semelhante compartilha Todorov, que lamenta a forma como o autobiográfico é tratada por alguns escritores:
 
A literatura (nesse caso, diz-se, preferencialmente, “a escrita”) tornou-se apenas um laboratório no qual o autor pode estudar a si mesmo a seu bel-prazer e tentar se compreender. É possível qualificar essa terceira tendência, após as do formalismo e do niilismo, de solipsismo, de acordo com essa teoria filosófica que postula que o si mesmo é o único ser existente. A falta de verossimilhança dessa teoria, de fato, a condena à marginalidade, mas isso não impede que ela se torne um programa de criação literária. Uma de suas variantes recentes é o que se chama de “autoficção”: o autor continua a se dedicar à evocação de seus humores, mas, além disso, se libera de todo constrangimento referencial, beneficiando-se assim da suposta independência da ficção quanto do prazer engendrado pela valorização de si. (TODOROV, 2009, p. 43).     

A condenação de Todorov pode ser dura, e soar um pouco retrógrada, mas ela é exata enquanto constatação. Cabe perguntar o que deflagrou esse solipsismo. Por que este interesse em cultivar o eu, com aparência referencial, mas se anunciando como ficção? Podemos arriscar uma hipótese. Pois, se fala muito do desprestígio da ficção, mas nunca estivemos em um ambiente tão ficcionalizado. Ou melhor: vivemos em um  mundo cada vez mais virtual, isso cria uma sensação de irrealidade, que desperta um desejo para o “real”, com isso, tudo que traz o selo da realidade e do referencial se torna mais atrativo. A ficção pode se tornar um exercício redundante e ocioso em um contexto sociocultural em que as histórias surgem ao vivo, ou on-line, vinte e quatro horas na TV e na internet. Eu posso ler um romance policial ou acompanhar no noticiário a cobertura do caso de algum crime envolvendo celebridades. A segunda alternativa tem o peso da realidade, mesmo se oferecendo pelo filtro dos discursos apelativos e sensacionalista dos jornais, também uma forma de ficção. Mas aí está o paradoxo, que Slavoj Zizek aponta: queremos a realidade, mas só conseguimos absorvê-la pelas lentes da ficção.
O virtual que nos cerca tem como meta esvaziar os objetos de seu núcleo real, para nos oferecer apenas o semblante do real. Mas o limite deste acúmulo de semblantes, a culminância do Virtual, é tornar a Realidade mais um semblante, mais uma categoria irreal e imaterial, isso cria a angústia de estarmos fora da vida: “o que acontece no final desse processo de virtualização é que começamos a sentir a própria ‘realidade real’ como uma entidade virtual”. (ZIZEK, 2003, p. 25). Essa angústia de voltar ao Real passa a ser explorada. O resultado disso é o comércio frequente da sensação do real. Que se torna um produto valioso. Mas o Real desejado só pode ser consumado por intermédio do virtual. Sãos os recursos virtuais que nos levam a ambicionar uma realidade que antes da virtualização era inacessível. Porém, os recursos são também a segurança final. Um exemplo disso: a pornografia snuff que oferece o sexo e a violência em sua versão funesta, mas com a garantia final da mediação da tela, da imagem. O corte pode ser fatal, mas o sangue nunca espirrará no rosto do espectador. Assim, produtos que oferecem o real em suas versões extremas, mas, esvaziado da propriedade fatal, se multiplicam: café sem cafeína, cerveja sem álcool, sexo sem sexo (virtual), e a “ficção sem a ficção”, ou a “autobiografia sem o núcleo referencial”, ou melhor: o pacto autobiográfico sem suas conseqüências éticas.
Deste modo, talvez não seja errado interpretamos o solipsismo como um fenômeno que explora esse desejo pelo real, oferecendo semblantes de autobiografia, que usa os recursos virtuais da técnica, para redimensionar a intimidade em suas dimensões microscópicas. A intimidade é oferecida com a garantia final do intermédio da “suposta autonomia” formal. De certa forma, estes autores usufruem da virtualização, da autonomia que a convenção literária conquistou com a ajuda da Teoria Literária. A garantia de que até o senso comum está preparado para diferenciar narrador e autor, incentiva o abuso desta garantia. Estes “abusos” são produtivos quando questionam e problematizam as fronteiras das convenções ficcionais e teóricas, e dispensáveis quando estacionam em um dos lados, acreditando que o simples batizar, nomear de “ficção”, de “estético”, anula o debate, as responsabilidades.   
Para terminar, não vamos impor conclusões. Achamos melhor aproveitar o espaço de uma conclusão para citar rapidamente dois exemplos que ilustram bem as discussões acima: W. G. Sebald e J. M. Coetzee, ambos acadêmicos por longa data e consagrados na ficção, mostram como combinar de forma crítica a relação entre romance autobiografia e ficção. No caso W. G. Sebald, o autobiográfico aparece para criar um “efeito do real” que depois é direcionado para o Outro, isto é, ele insere dados autobiográficos facilmente reconhecíveis, além de elementos documentais fortes, como fotografias, para angariar a credulidade do leitor.  Estabelecendo um sutil pacto autobiográfico, para em seguida biografar personagens anônimos da história que, mesmo não tendo existido, já estão suficientemente envolvidos nas nuances referenciais, distribuídas na linguagem híbrida, que não temos necessidade de duvidar da veracidade do narrado. Sebald se vale do pacto autobiográfico para humanizar seu narrador no nível do significante, abandonando a perspectiva ubíqua do narrador tradicional, e a partir da memória compõe “o quadro das pequenas narrativas” que se escondem sob o discurso oficial da História.  Já J. M. Coetzee no seu último romance, Verão, vale-se do pacto para questionar os limites do autobiográfico e biográfico. Pois, o romance mostra exatamente os fragmentos de uma biografia fracassada: acompanhamos o biógrafo do próprio John Coetzee frustrando-se ao descobrir que a imagem construída de um escritor pode se distanciar bastante da pessoa do autor. O escritor Coetzee tenta nos convencer que por trás de uma grande obra, pode se esconder uma pessoa medíocre. Desconstruindo sua autoimagem e a imagem pública construída em torna dele, ou melhor, inserindo novas dimensões fictícias, no interstício misterioso existente entre obra e autor.
Enfim, Sebald e Coetzee são dois exemplos de autores que, ao combinar o pacto autobiográfico e a ficção, conseguiram estrear campos discursivos que não anulam as diferenças, e nem interditam o debate.     .       



BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.
COETZEE, J. M. Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAY, Louis. A literatura dos escritores: questões de crítica genética. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2007.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008.
MARQUES, Reinaldo. O arquivamento do escritor. In: SOUZA, Eneida M. de; MIRANDA, Wander Melo (Org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. p. 141-156. 
_____________________. A ilusão autobiográfica. In: Corpos escritos. São Paulo: Edusp, 1992.
SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. In: Aletria- Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, FALE/UFMG, n. 18, p.173-179, jul./dez. 2008. SEBALD. W. G. Austerlitz. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_____________. Os emigrantes. Rio de Janeiro: Record, 2002
SOUZA, Eneide Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009. 
 ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo: Boitempo editorial, 2003.
       


sexta-feira, 24 de abril de 2015

EM BUSCA DA RIMA: O ITINERÁRIO DE MANUEL BANDEIRA






Provocativamente poderíamos dizer que Manuel Bandeira só optou pela rima por ter, em determinado momento, rejeitado-a iconoclastamente.  Ampliando nossa hipótese, diríamos também que a publicação dos primeiros livros do poeta ter sido realizada sob o regime das formas fixas, realçou o caráter deliberativo da “opção pela rima” em seus últimos livros. Queremos acreditar que nas suas primeiras obras a rima e as formas fixas foram resultantes de uma imposição, de uma relação sinônima entre a rima e a poesia, que reduzia minimamente a “opção”.  Supomos que escrever poesia no Brasil na primeira década do século XX significava aderir a determinadas formas fixas e determinadas rimas, e que o direito de escolha se restringia por um tipo de rima em detrimento de outra, e nunca por não escolher a “rima-formas-fixas”.
Com isso, a rima era um ponto de partida obrigatório, e em certo nível, automatizado e instituído. Igualmente a nudez de Eva e Adão antes do pecado, manifestava-se naturalizada, e só depois de um percurso de vestir para despir, a nudez passou a ser uma opção. Esta metáfora, emprestada de Derrida (2002), servirá como base a segunda parte deste artigo. Na qual, distinguiremos “rima instituída” e “rima buscada”. Antes, porém, seguiremos o itinerário poético de Manuel Bandeira, que ancora nossa hipótese com um testemunho escrito, em que descreve esse processo de tomada de consciência da materialidade do poema. Processo este que, para tirarmos proveito da simbologia religiosa, se caracteriza por um período de “inocência”, seguido por um de “pecado” (de libertinagem), e teve na vida de Manuel Bandeira um aspecto em parte acidental. Decorrente mais de uma inesperada longevidade do que de uma premeditação.
Na terceira parte e última, analisaremos dois poemas com a intenção de ilustrar nossa discussão teórica, que possuem o mesmo tema, “a morte”, mas apresentado com trataremos formais diferentes. O objetivo é explorar o princípio da adequação estética, de uma maneira acentuada, próxima da iconicidade.

O ITINERÁRIO

O livro Itinerário de pasárgada foi encomendado a Manuel Bandeira por Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. E deveria ser um livro de memórias, e até certo ponto esse tom é mantido. Mas depois o livro se assemelha a uma espécie de Filosofia da Composição, porém, em vez de se deter em um só poema como no texto de Edgar Allan Poe, o itinerário percorre todas as obras publicadas pelo poeta, fornecendo um testemunho esclarecedor sobre sua técnica e estilo.
O primeiro contato de Manuel Bandeira com a poesia ocorreu ainda na infância, quando entrou em contato com versos presentes em contos de fadas e histórias da carochinha. Juntaram-se a esses versos as cantigas de roda. Na escola, descobriu os clássicos portugueses, que se misturavam a influência da fala popular. Ainda no ginásio se arriscou a publicar dois sonetos, um foi rejeitado, o outro saiu nas páginas do Correio da Manhã, que saciou seu desejo de publicação, considerando encerrada a época dos versos. Para ele iria começar outra vida: a sua carreira de arquiteto. Mas adoeceu. E os versos que “fizera em menino por divertimento, principiaria então a fazê-los por necessidade, por fatalidade” (BANDEIRA, 1984, p. 28). É interessante como Manuel Bandeira reitera constantemente seus fracassos, atribuindo ao acidental e à fatalidade sua motivação para a carreira de poeta. Com isso, o malogro não foi apenas um tema recorrente em sua obra, mas um elemento constitutivo de sua técnica, pois a consciência de sua limitação o aproximou da materialidade do poema: impossibilitado de empreender voos transcendentais de fôlego, teve que assumir uma postura cada vez mais imanente diante da poesia:

Tomei consciência de que era um poeta menor; que me estaria para sempre fechado o mundo das grandes abstrações generosas; que não havia em mim aquela espécie de cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais se transmudam em emoções estéticas: o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou melhor, a duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda menores alegrias (BANDEIRA, 1984, p. 30).    

Esse comentário poderia ser apenas um exercício de modéstia, mas ter constatado sua condição de “poeta menor” o levou a aprender “ainda antes de conhecer a lição de Mallarmé, que em literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e bons sentimentos...” (idem, p.30-31). Deste modo, a impossibilidade e as condições adversas levaram-no a um posicionamento mais crítico do fazer poético, como na passagem de Valéry, lembrada por Bandeira: é melhor fazer um poema medíocre em estado de lucidez, do que um grande poema em estado de transe.  Algo que nos leva a pensar que o “menor” tem um sentido semelhante ao usado por Deleuze e Guatarri (1977) ao conceituarem a literatura menor, pois a impossibilidade incentiva o aprofundamento na matéria, suspendendo os empreendimentos místicos, para extrair do osso da língua um sentido que não ultrapassa o significante, ou seja, uma literatura feita apenas de palavras, e não de significados: conceitos, ideias, bons sentimentos: “a linguagem deixa de ser representativa para tender para seus extremos ou seus limites” (p.36). Em Manuel Bandeira essa lucidez quanto ao uso das palavras fica esclarecida quando nos apresenta um exercício de observação que o ajudou a aperfeiçoar sua técnica, trata-se de analisar as “emendas” feitas por poetas consagrados em versões diferentes de um mesmo poema, como por exemplo, esta feita por Castro Alves neste dístico: “mas uma voz repete-me sombria/ terás abrigo sob a lájea fria” foi mudado para “mas uma voz responde-me sombria/ terás o sono sob a lájea fria”, em seguida Bandeira comenta a alteração: “evidentemente melhor pelo desaparecimento do eco em “fria” do i de “abrigo”, e porque “sono” evoca muito mais fortemente a ideia de morte.” (BANDEIRA, 1984, p. 32). Além dessa emenda, Manuel cita outras em que coteja duas versões de um poema, seguidas de comentários que comprovam como foi adquirindo consciência do uso certeiro da língua:

Cotejo como esses me foram ensinando a conhecer os valores plásticos e musicais dos fonemas; me foram ensinando que a poesia é feita de pequeninos nadas e que, por exemplo, uma dental em vez de uma labial pode estragar um verso (BANDEIRA, 1984, p. 32).     

Outro fator que contribuiu para a formação da técnica de Manuel Bandeira foi aprender com os “versos fracos” de grandes poetas. Sob o rigoroso sistema parnasiano era normal poemas serem considerados fracos por motivos previamente estabelecidos, como o uso de rimas pobres, ou uso de hiato, contra esses excessos maneiristas dos parnasianos, um soneto “O céu, a terra, o vento sossegado” de Camões serviu para Manuel Bandeira como fonte de inesgotáveis reflexões. No soneto vemos o uso de dois recursos abominados pelos parnasianos, como o uso do hiato “entre uma dicção e outra”, e de rimas com predominância do particípio; a respeito do uso ou não do hiato Manuel Bandeira travou uma demorada discussão, via artigos, com o crítico Machado Sobrinho em O correio de Minas de Juiz de Fora. É quase inacreditável pensar que o poeta de Libertinagem se demorasse tanto com uma questão que à vista das conquistas modernistas parece inócua, mas em 1912, época da discussão, a liberdade criativa era cerceada por uma espécie de gramática do verso, e a única forma de fugir de determinados preciosismos formais era tentando encontrar um precedente em um poeta clássico. Já no caso das rimas Bandeira faz esta reflexão:

Mas voltando ao soneto de Camões: outra coisa que aprendi nele e em outros (...) foi não desdenhar das chamadas rimas pobres. Rimas de particípios passados, por exemplo, como no transcrito soneto de Camões, onde “sossegado” rima com “repousado”, “deitado” e “nomeado”. São eles tão pertinentes ao assunto (Machado de Assis de uma feita comentara versos meus com meu pai, elogiando as rimas, que lhe pareciam “bem ligadas ao assunto”), soam tão bem dentro da tonalidade geral do poema, que ninguém se lembra que são todos particípios passados. Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, mas surpresa nascida não da raridade, senão de uma espécie de resolução musical, como neste verso das “Pombas”: Raia, sanguínea e fresca, a madrugada. Essa “madrugada”, onde está, é uma das rimas mais belas, mais generosas, mais euforizantes de toda a poesia de língua portuguesa. (BANDEIRA, 1984, p. 40).   

A rima para Manuel atende uma funcionalidade dentro do poema, e seu valor não pode ser definido previamente. Assim, a situação contextual é que irá atribuir o seu valor, e não “uma gramática” parnasiana da rima. Mas, o interessante é que neste momento da carreira do poeta, a saber, o período que vai de 1904 a 1917, os treze anos em que segundo Bandeira definiu sua técnica, este não vislumbra a opção de simplesmente não rimar, a pouca liberdade conquistada frente ao rigoroso sistema da época era sempre orientada pelo exemplo de algum poeta do passado: Camões, Gonçalves Dias, Antonio Nobre, dentre outros que Manuel aponta como seus influenciadores. Sabemos que as vanguardas já estouravam na Europa, enquanto aqui se discutia se o correto era acentuar “octossílabo na quarta sílaba” ou não. Na verdade, Manuel Bandeira revela, em determinada passagem, que estava bem à vontade com a métrica e com a rima: “não me lembro de problemas dentro da metrificação, que eu não tivesse resolvido prontamente”.  E sua dificuldade maior foi ter que se desfazer da métrica que saía naturalmente em seus versos. Tanto que, demorou certo tempo até conseguir fazer seu primeiro poema inteiramente em versos livres:

O verso verdadeiramente livre foi para mim uma conquista difícil. O hábito do ritmo metrificado, da construção redonda foi-me corrigindo lentamente à força que estranhos dessensibilizantes: traduções em prosa (as de Poe por Mallarmé) ... menus, receitas de cozinha, formulas de preparados para pele...(BANDEIRA, 1984, p. 44)

A liberdade plena, a consciência da liberdade só veio com Libertinagem, antes disso, Manuel Bandeira assumia uma relação de ingenuidade com a escrita, pela adesão às formas fixas de modo automatizado, ou pelo fato de confessar que em seus três primeiros livros a poesia ainda se manifestava como um desabafo, como expressão de sentimento, e não como construções programadas, Bandeira reconhece essa divisão em um antes e um depois de Libertinagem, de um período de inocência, em que o fazer poético tinha algo de acidental, e de um depois em que alcança uma afinação poética plena:

A mim me parece bastante evidente que O ritmo Dissoluto é um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para quê? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso-livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas ideias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem. (BANDEIRA, 1984, p. 75).

De fato, em Libertinagem o excesso é algo deliberado, a premência pela experimentação fica evidente na forma como o poeta evita as rimas, até mesmo as ocasionais. Além da predominância da temática popular, na quebra do tema nobre e da retórica afetada. O tom narrativo, da Crônica, também comparece ao lado de um humor provocativo. Os poemas do livro foram escritos nos anos de maior força do modernismo. Mas Bandeira atribui grande parte da experimentação, bastante visível no livro, ao “espírito do grupo alegre” com quem convivia na época, do que a agenda de investidas iconoclastas dos modernistas.  Manuel Bandeira dificilmente assume uma postura em que o mérito lhe seja completo, e sempre pondera creditando uma parte as circunstâncias. Porém, a intenção de livrar-se inteiramente da dicção da métrica, rima e formas fixas se evidenciam não só nos enunciados dos poemas, como também no nível da enunciação: nos jornais da época Bandeira realizava suas interessantes “traduções” para o modernismo, como esta feita deste trecho do autor de a Moreninha
Mulher, irmã, escuta-me: não ames.
Quando a teus pés um homem terno e curvo
Jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não, mulher: ele te engana!
As lágrimas são galas da mentira
E o juramento manto da perfídia.

Que na tradução “pra caçanje”, língua dos cafajestes, fica assim:

Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA.

Bandeira chama esses exercícios de meras piadas. Mas parece ser uma manifestação exata da consciência de existir um antes e um depois, esclarecido pelo termo tradução: diferença de linguagem considerável ao ponto de exigir uma transposição, por mais que irônica.

 DESPIR PARA VESTIR

A poesia é a matéria, mas a matéria não é especificamente um gênero. Diríamos antes que a poesia excede constantemente o gênero e o poema. As formas fixas durante algum tempo serviram para estabilizar um sentido, e assegurar um efeito comunicativo mínimo. Pois a fixidez não se restringia só a forma, estendia-se ao conteúdo e ao tema, a poesia “até o início do século XIX, e, em parte, até depois, a poesia achava-se no âmbito de ressonância da sociedade, era esperada como um quadro idealizante de assuntos ou situações costumeiras...” (FRIEDRICH, 1978, p. 20). A poesia era um complemento salutar da sociedade e deveria nas palavras de Goethe fornecer aprazimento, alegria, plenitude harmônica e afetuosa. Já

as qualidades formais chamam-se: a significância (o conteúdo significativo) da palavra, uma “linguagem contida”, que “procede com cautela tranquila e exatidão” e escolhe cada palavra na medida justa, “sem conceitos assessórios”. Schiller Vale-se de conceitos análogos: a poesia enobrece, dá dignidade ao afeto; é “idealização de seu objeto, sem a qual deixaria de merecer seu nome”; evita “raridades” (singularidades) que contrastariam com o “idealmente universal” (FRIEDRICH, 1978, pp. 20-21)

Essa definição de poesia espelha a concepção iluminista de indivíduo: autocentrado, munido de sua razão instrumental. Algo que iria ruir no fim do século XIX, juntamente com qualquer intenção de comunicar e confortar, uma vez que, os poetas rompem com a sociedade e se exilam hermeticamente na dissonância: desistem de transmitir um sentido, em nome de um efeito. Mas esta dissonância é contingência da Modernidade. Com isso, a forma tenta condensar um Zeitgeist. Uma formação discursiva orienta em parte a preferência por determinadas construções figurativas, a coadunação praticamente inevitável entre a unidade espiritual de uma época e suas formas fixas e temáticas criam uma sensação de transparência do signo.  Isso leva a se confundir forma fixa com poesia, rima com poesia. No senso comum esta associação é em grande parte irreversível. Assim como língua e gramática são para maioria dos falantes conceitos sinônimos, quando na verdade se opõem: a gramática tenta conter a tendência para a variação da língua, normatizando-a. Cada época normativa a poesia para adequá-la a uma formação ideológica, e metonimicamente a parte formal é tomada como o todo. Mas uma formação ideológica nunca é plena, existem margens de resistência que atrai a poesia, e a partir desse ponto de resistência rasga-se, para falar com Deleuze e Guatarri (1977), linhas de fuga para fora do sentido.
Deste modo, um período histórico, com seus conjuntos de valores, traz representações estéticas que repercutem na estrutura superficial (formas fixas, rimas) e no fundo temático, estes mesmos conjuntos de valores. Com isso, o sentido imediato origina-se desta coincidência cosmológica. Logicamente essa afirmação não é nova, e poderíamos ir mais longe dizendo que isso valeria para grande parte dos produtos culturais de determinada época. Mas no caso da poesia, mesmo quando está integrada ao Zeitgeist, ela destoa, para efeito de sentido, em menor ou maior grau do fundo histórico. Pois uma das obrigações da poesia é “idealizar o seu objeto”, artificializá-lo estrategicamente no plano do enunciado para abranger e estruturar o maior número de situações. Por exemplo, um “eu” que parte de uma enunciação urbana para compor um enunciado em que se apresenta virtualmente como pastor de ovelhas.  Neste caso, essa temática mesmo destoante na relação imediata de enunciado e enunciação, é prevista, assim como as formas que a acompanham, e especificamente neste exemplo, até mesmo determinado nomes e paisagens eram recomendados e orientados pela fatura de valores vigente.
Mas a poesia depende da imprevisibilidade, e por isso sua tendência a se artificializar radicaliza-se ao ponto de não ser controlada ou orientada por uma “unidade espiritual”. No entanto, existem poetas e poemas que tendem a se integrar completamente ao fundo histórico, e na maioria das vezes desaparecem com ele. Como não separamos forma e conteúdo, dizemos que há rimas e formas fixas que estão em ressonância com essa formação discursiva (rimas instituídas), e por isso, é praticada com certa automatização, mas há rimas e formas que se recortam em dissonância ao fundo (rimas que resultam de uma busca intelectual destoante).  Para que isso fique claro, ou mesmo para que ganhe mais complexidade, iremos usar uma argumentação de Derrida feita para um contexto diferente, mas que adaptaremos para nossa discussão. Trata-se de uma passagem sobre a nudez, feita em seu O animal que logo sou:

O animal, portanto, não está nu porque ele é nu. Ele não tem o sentimento de sua nudez. Não há nudez “na natureza”. Existe apenas o sentimento, o afeto, a experiência (consciente ou inconsciente) de existir na nudez. Por ele ser nu, sem existir na nudez, o animal não se sente nem se vê nu. Assim, ele não está nu. Ao menos é o que se pensa. Para o homem seria o contrário, e o vestuário responde a uma técnica. Nós teríamos então de pensar juntos, como um mesmo “tema”, o pudor e a técnica. E o mal e a história, e o trabalho, e tantas outras coisas que o acompanham. O homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para esconder seu sexo. Só seria homem ao torna-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao saber-se pudico porque não está mais nu. (DERRIDA, 2002, pp. 17-18)

O animal não é nu porque sempre esteve nu, não existe a possibilidade de se despir: uma consciência da não nudez, uma distinção entre um antes e um depois, levaria a um evento de escolher entre uma situação e outra, e de agregar valor a cada um dos estados: nudez e não nudez.  Quando trazemos para o nosso contexto dizemos que existe uma rima instituída em um plano no qual a “não-rima” nunca é prevista, por isso, usa-se a rima sem saber do seu antes e sem vislumbrar um depois. A rima se torna, falaremos a partir de agora englobando as formas fixas, a via exclusiva para o poema, antes mesmo de este ser julgado como provedor de poesia. Assim, neste ambiente a rima não pode ser uma opção, ela é uma natureza inquestionável para se chegar ao poema. O poema é visto como a própria rima. O fazer poético parte de uma adesão inconsciente e estagnada.  Este plano de fundo estático e estagnado seria a nudez nunca vestida com outra possibilidade.  Somente o investimento de uma técnica não-prevista poderia fazer um corte de um antes e depois, que faria da rima um produto deliberativo, e não apenas imperativo. Lembremos o exemplo por nós na primeira parte do artigo: Manuel Bandeira exercitava as rimas apenas como algo dado, seu poder de decisão se restringia em seguir as rimas dadas por Camões e as rimas dadas pelo sistema Parnasiano, sua decisão girava apenas no campo restrito de uma autoria mínima, e nunca alcançava o não-dado.   
Com o livro Libertinagem Manuel Bandeira desvestiu a pele estagnada e estática da rima instituída, experimentou a não-rima, estabeleceu zonas de valor entre um antes e depois, ou um sim e um não, ou melhor ainda: quando melhor sim e quando melhor não. O poema não é mais apenas a rima, ele pode ser a ausência de qualquer rima. Rimar passa ser uma decisão que atende a um efeito poético. O modernismo e a modernidade na poesia instauraram a não-rima como um fundo recomendado, e seguindo a lógica do superego invertido, rimar passou a ser o destoante, isso talvez explique parcialmente a volta da rima nesse contexto “pós-tudo-mudo”.
Do itinerário retomemos na memória a passagem que Bandeira fala que teve mais dificuldade para compor fora do metro e da rima, pois alguns versos já saíam redondos, rimados e metrificados. Mas ao tentar fazer os seus primeiros versos-livres se deparou com dilemas que não conseguiu resolver prontamente, exigindo menos automatismo. Com isso, escrever sob o regime da rima instituída pressupõe ter uma parte do poema fornecido por convenção: o “não uso de hiato entre uma dicção e outra”, o “não uso de rimas no particípio”, e o principal: o “sempre uso de rimas e formas fixas”. Isso em grande parte influencia no poema e no gênero, a poesia está na matéria que faz parte do poema, mas a matéria nunca precisará ser um tipo de poema para ser poesia.  As “emendas” analisadas por Manuel Bandeira que reproduzimos no Itinerário esclarecem essa proposição, pois radicalmente Bandeira afirma que em um dístico existe poesia e no outro não. Ora, os dois dísticos são versões diferentes de um texto, considerados poemas pertencentes à mesma forma fixa e ao mesmo esquema de rimas, mas uma simples mudança na matéria, umas palavras por outras, foi suficiente para o juízo categórico de Bandeira (1984): “com esta diferença capital: no segundo verso há poesia, no primeiro não” (p.32). Poemas escritos em formas fixas e em regime de rima instituída deixam menos espaço e liberdade para se trabalhar a matéria: menos espaço para a imprevisibilidade.
Assim, a poesia é uma entidade amorfa, que depende provisoriamente de uma forma, pois neste sentido amorfa não significa ausência de forma, mas a garantia inicial de sua indefinição.  Ou como diria Jean-Luc Nancy (2005): “a poesia não coincide consigo mesma: talvez seja essa não-coincidência, essa impropriedade substancial, aquilo que faz propriamente a poesia” (p.11). A impropriedade substancial se aguça no contexto não instituído do fazer poético, pois o percurso será menos programado, e entendendo que a poesia não é um espírito suspenso no ar, este percurso, o processo, é a própria poesia.  

 O CORPO DA MORTE

A não determinação de um poema por uma forma fixa incentiva um movimento de iconicidade: o conceito se desenha visualmente no próprio poema, as palavras tendem a reproduzir na materialidade linguística o evento. Vejamos dois poemas de Manuel Bandeira sobre o mesmo tema, a Morte, mas com tratamentos formais diferentes. Os poemas são “A morte absoluta” e “Canção para minha Morte”, o primeiro publicado em Lira dos Cinquenta Anos e o segundo em Estrela da Tarde. No primeiro poema não temos nenhuma adesão a uma forma fixa ou rima, ou seja, nenhuma parte do poema é adiantada por convenção, e o poeta tira proveito disso escolhendo um verso curto, constituído apenas pelo verbo “morrer”.

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente
.
           Logo a morte absoluta anunciada no título começa a se materializar: o verbo intransitivo é seguido de um ponto, que encerra ainda mais a intransitividade, e também qualquer expectativa de transcendência, aliás, as locuções do segundo verso delimitam a morte no biológico e no espiritual, e o advérbio de modo posto secamente e também pontuado, serve como uma pá de cal. Uma vez morto o corpo e a alma restam apenas os rituais e os despojos físicos:
 Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
O verbo morrer se repete mais uma vez e se repetirá no inicio de todas as estrofes, como se eu lírico soubesse que há diversas formas de sobrevida, que precisam ser atacadas e vencidas. Os versos são mais longos porque começam a se ocupar em degradar os componentes materiais de uma última presença: o corpo frio no caixão, as flores que metonimicamente anunciam o destino da carne. Em seguida, a degradação se completa, porque além da degradação sob a terra, o eu também ambiciona a sobre a terra:
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

O primeiro verso se alonga livremente e a reticência pontua uma vontade de ir além, como se fosse a própria caminhada interrompida com as perguntas descrentes e retóricas. Na estrofe seguinte as marcas mnemônicas que possam permanecer são gradativamente eliminadas com a repetição do pronome indefinido e excludente, que tenta varrer a imortalidade mantida pela afetividade dos que ficam.  Enfim, apagados os traços físicos e mnemônicos só falta eliminar o último traço de uma existência:  
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
 
Nos últimos versos temos a intransitividade verbal amplificada ainda mais com o uso de advérbios de intensidade e grau, e em três versos narrativos o “eu” esclarece o que seria essa morte “tão” plena: a histórica. O desejo de seu nome se tornar um significante opaco, apenas uma mera sequencia mineral sem conotação. Com isso, vemos o poema conceituar uma morte sem mistificação, sem transcendentalismos, que é desenhada iconicamente na superfície do poema, que tem uma matéria linguística descarnada, na qual as palavras resistem à figuração, os recursos metafóricos são recusados em detrimento de recursos metonímicos e gradativos, conseguindo corporificar uma morte que seja apenas uma desintegração biológica do corpo e um apagamento histórico do indivíduo e do sujeito.  Prova disso é que a morte não aparece no decorrer do poema como substantivo, mas apenas como um ato, uma ação intransitiva.
Já no segundo poema temos a opção por uma forma fixa indicada no próprio título “Canção para minha Morte”, a canção é um gênero bastante popular e isso não passou despercebido:

Bem que filho do Norte,
Não sou bravo nem forte.
Mas, como a vida amei,
Quero te amar, ó morte,
- Minha morte, pesar
Que não te escolherei

A primeira estrofe começa como tivesse ponderando uma fala anterior “bem que” poderia ser forma abreviada do termo “se bem que”, algo que nos parece confirmado pela preferência por “pesar” em vez de “apesar”. Este “bem que” poderia está secundando a uma voz da tradição popular, e essa tradição apresenta-se como se fosse a própria rima “forte/norte”. Sabemos que os ditados ganham mais força quando estão rimados, e contra essa força de verdade da rima que o “eu” se nega: “não sou não nem bravo nem forte, apesar de ser filho do norte”. Em seguida a morte é apresentada como sua interlocutora por meio do pronome “te”, então vemos a primeira marca de personificação dela. E o diálogo prossegue:

Do amor tive na vida
Quanto amor pode dar:
Amei, não sendo amado,
E sendo amado, amei.
Morte, em ti quero agora
Esquecer que na vida
Não fiz senão amar.
Aqui nesta estrofe o “eu” tenta fazer um jogo de ideias que lembra também cantigas populares, o recurso é feito pela repetição e inversão de frases “Amei, não sendo amado/sendo amado, amei” parece uma tentativa de transferir o sentido positivo de uma para a outra: seu amor pela vida transferido para morte, por meio da palavra. Apesar de não ter rimas próximas o ritmo acelera e diminui conforme as pausas, como que marcando um momento de euforia, seguido de uma pausa reflexiva. Na última estrofe a sonoridade é mais acentuada:

Sei que é grande maçada
Morrer, mas morrerei
- Quando fores servida
Sem maiores saudades
Desta madrasta vida,
Que todavia amei

Percebam que depois do travessão os versos, pelo recurso enjambement, formam uma fala contínua, com uma rápida pausa na vírgula. Os sons são provocados pelas rimas que não coincidem necessariamente com a grafia “Maçada/Saudade”, além das outras “servida/vida”, “morrerei/amei”.  A composição fecha-se de forma redonda. E com isso o conceito de morte desta opção formal é mais figurado, mas de uma figuração de cunho popular: a personificação da morte e da vida, como nas histórias e lendas medievais, como ocorre nos chamados até então Romances, composição em verso medieval que o própria Bandeira chega a praticar.  O tom receptivo, e as rimas atuam sobre este tom, em relação à Morte também lembra um imaginário popular medieval, que vê na morte o momento em que a sabedoria e a liberdade se materializam.
Para terminar, lembramos que os dois poemas foram escritos em um período pós-Libertinagem, ou seja, antes de iniciar os poemas havia uma liberdade maior para se trabalhar a matéria. Esse ponto de partida não delimitado por um regime de rimas-métrica-formas instituídas permitiu que o eu lírico desenhasse linguisticamente, na superfície mineral do papel, o conceito e o corpo de cada morte.   

REFERÊNCIA:

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
______ O itinerário de pasárgada. São Paulo: Record, 1984.
CANDIDO, Antonio.  Na sala de aula: cadernos de análise literária. São Paulo: Àtica, 2007.
______ O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas, 1996.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (a seguir). São Paulo: Editora Unesp, 2002.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.






O VALE DA DESTRUIÇÃO

Eu andei no vale da morte e só encontrei destruição. A morte perdeu a piedade por nós e nos abandonou para apodrecermos em v...