EM
BUSCA DA RIMA: O ITINERÁRIO DE MANUEL BANDEIRA
Provocativamente
poderíamos dizer que Manuel Bandeira só optou pela rima por ter, em determinado
momento, rejeitado-a iconoclastamente. Ampliando
nossa hipótese, diríamos também que a publicação dos primeiros livros do poeta
ter sido realizada sob o regime das formas fixas, realçou o caráter
deliberativo da “opção pela rima” em seus últimos livros. Queremos acreditar que
nas suas primeiras obras a rima e as formas fixas foram resultantes de uma
imposição, de uma relação sinônima entre a rima e a poesia, que reduzia
minimamente a “opção”. Supomos que
escrever poesia no Brasil na primeira década do século XX significava aderir a
determinadas formas fixas e determinadas rimas, e que o direito de escolha se restringia
por um tipo de rima em detrimento de outra, e nunca por não escolher a
“rima-formas-fixas”.
Com isso, a rima era um
ponto de partida obrigatório, e em certo nível, automatizado e instituído. Igualmente
a nudez de Eva e Adão antes do pecado, manifestava-se naturalizada, e só depois
de um percurso de vestir para despir, a nudez passou a ser uma opção. Esta
metáfora, emprestada de Derrida (2002), servirá como base a segunda parte deste
artigo. Na qual, distinguiremos “rima instituída” e “rima buscada”. Antes,
porém, seguiremos o itinerário poético de Manuel Bandeira, que ancora nossa
hipótese com um testemunho escrito, em que descreve esse processo de tomada de
consciência da materialidade do poema. Processo este que, para tirarmos proveito
da simbologia religiosa, se caracteriza por um período de “inocência”, seguido por
um de “pecado” (de libertinagem), e teve
na vida de Manuel Bandeira um aspecto em parte acidental. Decorrente mais de
uma inesperada longevidade do que de uma premeditação.
Na terceira parte e
última, analisaremos dois poemas com a intenção de ilustrar nossa discussão
teórica, que possuem o mesmo tema, “a morte”, mas apresentado com trataremos
formais diferentes. O objetivo é explorar o princípio da adequação estética, de
uma maneira acentuada, próxima da iconicidade.
O
ITINERÁRIO
O livro Itinerário de pasárgada foi encomendado
a Manuel Bandeira por Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. E deveria ser um
livro de memórias, e até certo ponto esse tom é mantido. Mas depois o livro se assemelha
a uma espécie de Filosofia da Composição,
porém, em vez de se deter em um só poema como no texto de Edgar Allan Poe, o itinerário percorre todas as obras
publicadas pelo poeta, fornecendo um testemunho esclarecedor sobre sua técnica
e estilo.
O primeiro contato de
Manuel Bandeira com a poesia ocorreu ainda na infância, quando entrou em
contato com versos presentes em contos de fadas e histórias da carochinha. Juntaram-se
a esses versos as cantigas de roda. Na escola, descobriu os clássicos portugueses,
que se misturavam a influência da fala popular. Ainda no ginásio se arriscou a
publicar dois sonetos, um foi rejeitado, o outro saiu nas páginas do Correio da Manhã, que saciou seu desejo
de publicação, considerando encerrada a época dos versos. Para ele iria começar
outra vida: a sua carreira de arquiteto. Mas adoeceu. E os versos que “fizera
em menino por divertimento, principiaria então a fazê-los por necessidade, por
fatalidade” (BANDEIRA, 1984, p. 28). É interessante como Manuel Bandeira
reitera constantemente seus fracassos, atribuindo ao acidental e à fatalidade sua
motivação para a carreira de poeta. Com isso, o malogro não foi apenas um tema
recorrente em sua obra, mas um elemento constitutivo de sua técnica, pois a
consciência de sua limitação o aproximou da materialidade do poema: impossibilitado
de empreender voos transcendentais de fôlego, teve que assumir uma postura cada
vez mais imanente diante da poesia:
Tomei
consciência de que era um poeta menor; que me estaria para sempre fechado o
mundo das grandes abstrações generosas; que não havia em mim aquela espécie de
cadinho onde, pelo calor do sentimento, as emoções morais se transmudam em
emoções estéticas: o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras penas, ou
melhor, a duras esperas, do pobre minério das minhas pequenas dores e ainda
menores alegrias (BANDEIRA, 1984, p. 30).
Esse comentário poderia
ser apenas um exercício de modéstia, mas ter constatado sua condição de “poeta
menor” o levou a aprender “ainda antes de conhecer a lição de Mallarmé, que em
literatura a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com ideias e
bons sentimentos...” (idem, p.30-31).
Deste modo, a impossibilidade e as condições adversas levaram-no a um
posicionamento mais crítico do fazer poético, como na passagem de Valéry,
lembrada por Bandeira: é melhor fazer um poema medíocre em estado de lucidez,
do que um grande poema em estado de transe. Algo que nos leva a pensar que o “menor” tem
um sentido semelhante ao usado por Deleuze e Guatarri (1977) ao conceituarem a
literatura menor, pois a impossibilidade incentiva o aprofundamento na matéria,
suspendendo os empreendimentos místicos, para extrair do osso da língua um
sentido que não ultrapassa o significante, ou seja, uma literatura feita apenas
de palavras, e não de significados: conceitos, ideias, bons sentimentos: “a linguagem deixa de ser representativa para
tender para seus extremos ou seus limites” (p.36). Em Manuel Bandeira essa
lucidez quanto ao uso das palavras fica esclarecida quando nos apresenta um
exercício de observação que o ajudou a aperfeiçoar sua técnica, trata-se de analisar
as “emendas” feitas por poetas consagrados em versões diferentes de um mesmo
poema, como por exemplo, esta feita por Castro Alves neste dístico: “mas uma
voz repete-me sombria/ terás abrigo
sob a lájea fria” foi mudado para “mas uma voz responde-me sombria/ terás o sono sob a lájea fria”, em seguida
Bandeira comenta a alteração: “evidentemente melhor pelo desaparecimento do eco
em “fria” do i de “abrigo”, e porque “sono” evoca muito mais fortemente a ideia
de morte.” (BANDEIRA, 1984, p. 32). Além dessa emenda, Manuel cita outras em
que coteja duas versões de um poema, seguidas de comentários que comprovam como
foi adquirindo consciência do uso certeiro da língua:
Cotejo como
esses me foram ensinando a conhecer os valores plásticos e musicais dos
fonemas; me foram ensinando que a poesia é feita de pequeninos nadas e que, por
exemplo, uma dental em vez de uma labial pode estragar um verso (BANDEIRA,
1984, p. 32).
Outro fator que contribuiu
para a formação da técnica de Manuel Bandeira foi aprender com os “versos
fracos” de grandes poetas. Sob o rigoroso sistema parnasiano era normal poemas
serem considerados fracos por motivos previamente estabelecidos, como o uso de
rimas pobres, ou uso de hiato, contra esses excessos maneiristas dos
parnasianos, um soneto “O céu, a terra, o vento sossegado” de Camões serviu
para Manuel Bandeira como fonte de inesgotáveis reflexões. No soneto vemos o
uso de dois recursos abominados pelos parnasianos, como o uso do hiato “entre
uma dicção e outra”, e de rimas com predominância do particípio; a respeito do
uso ou não do hiato Manuel Bandeira travou uma demorada discussão, via artigos,
com o crítico Machado Sobrinho em O
correio de Minas de Juiz de Fora. É quase inacreditável pensar que o poeta
de Libertinagem se demorasse tanto
com uma questão que à vista das conquistas modernistas parece inócua, mas em
1912, época da discussão, a liberdade criativa era cerceada por uma espécie de
gramática do verso, e a única forma de fugir de determinados preciosismos
formais era tentando encontrar um precedente em um poeta clássico. Já no caso
das rimas Bandeira faz esta reflexão:
Mas voltando ao
soneto de Camões: outra coisa que aprendi nele e em outros (...) foi não
desdenhar das chamadas rimas pobres. Rimas de particípios passados, por
exemplo, como no transcrito soneto de Camões, onde “sossegado” rima com
“repousado”, “deitado” e “nomeado”. São eles tão pertinentes ao assunto (Machado
de Assis de uma feita comentara versos meus com meu pai, elogiando as rimas,
que lhe pareciam “bem ligadas ao assunto”), soam tão bem dentro da tonalidade
geral do poema, que ninguém se lembra que são todos particípios passados.
Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, mas surpresa
nascida não da raridade, senão de uma espécie de resolução musical, como neste
verso das “Pombas”: Raia, sanguínea e
fresca, a madrugada. Essa “madrugada”, onde está, é uma das rimas mais
belas, mais generosas, mais euforizantes de toda a poesia de língua portuguesa. (BANDEIRA,
1984, p. 40).
A rima para Manuel
atende uma funcionalidade dentro do poema, e seu valor não pode ser definido
previamente. Assim, a situação contextual é que irá atribuir o seu valor, e não
“uma gramática” parnasiana da rima. Mas, o interessante é que neste momento da
carreira do poeta, a saber, o período que vai de 1904 a 1917, os treze anos em
que segundo Bandeira definiu sua técnica, este não vislumbra a opção de
simplesmente não rimar, a pouca liberdade conquistada frente ao rigoroso
sistema da época era sempre orientada pelo exemplo de algum poeta do passado: Camões,
Gonçalves Dias, Antonio Nobre, dentre outros que Manuel aponta como seus
influenciadores. Sabemos que as vanguardas já estouravam na Europa, enquanto
aqui se discutia se o correto era acentuar “octossílabo na quarta sílaba” ou
não. Na verdade, Manuel Bandeira revela, em determinada passagem, que estava
bem à vontade com a métrica e com a rima: “não me lembro de problemas dentro da
metrificação, que eu não tivesse resolvido prontamente”. E sua dificuldade maior foi ter que se desfazer
da métrica que saía naturalmente em seus versos. Tanto que, demorou certo tempo
até conseguir fazer seu primeiro poema inteiramente em versos livres:
O verso
verdadeiramente livre foi para mim uma conquista difícil. O hábito do ritmo
metrificado, da construção redonda foi-me corrigindo lentamente à força que
estranhos dessensibilizantes: traduções em prosa (as de Poe por Mallarmé) ... menus, receitas de cozinha, formulas de
preparados para pele...(BANDEIRA, 1984, p. 44)
A liberdade plena, a
consciência da liberdade só veio com Libertinagem,
antes disso, Manuel Bandeira assumia uma relação de ingenuidade com a escrita,
pela adesão às formas fixas de modo automatizado, ou pelo fato de confessar que
em seus três primeiros livros a poesia ainda se manifestava como um desabafo,
como expressão de sentimento, e não como construções programadas, Bandeira
reconhece essa divisão em um antes e um depois de Libertinagem, de um período de inocência, em que o fazer poético
tinha algo de acidental, e de um depois em que alcança uma afinação poética
plena:
A mim me parece
bastante evidente que O ritmo Dissoluto
é um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para
quê? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso-livre como
nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na
expressão das minhas ideias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo,
à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro
seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem.
(BANDEIRA, 1984, p. 75).
De
fato, em Libertinagem o excesso é
algo deliberado, a premência pela experimentação fica evidente na forma como o
poeta evita as rimas, até mesmo as ocasionais. Além da predominância da temática
popular, na quebra do tema nobre e da retórica afetada. O tom narrativo, da
Crônica, também comparece ao lado de um humor provocativo. Os poemas do livro
foram escritos nos anos de maior força do modernismo. Mas Bandeira atribui
grande parte da experimentação, bastante visível no livro, ao “espírito do
grupo alegre” com quem convivia na época, do que a agenda de investidas iconoclastas
dos modernistas. Manuel Bandeira
dificilmente assume uma postura em que o mérito lhe seja completo, e sempre
pondera creditando uma parte as circunstâncias. Porém, a intenção de livrar-se
inteiramente da dicção da métrica, rima e formas fixas se evidenciam não só nos
enunciados dos poemas, como também no nível da enunciação: nos jornais da época
Bandeira realizava suas interessantes “traduções” para o modernismo, como esta
feita deste trecho do autor de a Moreninha:
Mulher, irmã, escuta-me: não ames.
Quando a teus pés um homem terno e curvo
Jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não, mulher: ele te engana!
As lágrimas são galas da mentira
E o juramento manto da perfídia.
Que
na tradução “pra caçanje”, língua dos cafajestes, fica assim:
Teresa, se algum sujeito bancar o
sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um
bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA.
Bandeira
chama esses exercícios de meras piadas. Mas parece ser uma manifestação exata
da consciência de existir um antes e um depois, esclarecido pelo termo tradução: diferença de linguagem
considerável ao ponto de exigir uma transposição, por mais que irônica.
DESPIR PARA VESTIR
A poesia é a matéria,
mas a matéria não é especificamente um gênero. Diríamos antes que a poesia
excede constantemente o gênero e o poema. As formas fixas durante algum tempo
serviram para estabilizar um sentido, e assegurar um efeito comunicativo
mínimo. Pois a fixidez não se restringia só a forma, estendia-se ao conteúdo e
ao tema, a poesia “até o início do século XIX, e, em parte, até depois, a
poesia achava-se no âmbito de ressonância da sociedade, era esperada como um
quadro idealizante de assuntos ou situações costumeiras...” (FRIEDRICH, 1978,
p. 20). A poesia era um complemento salutar da sociedade e deveria nas palavras
de Goethe fornecer aprazimento, alegria, plenitude harmônica e afetuosa. Já
as qualidades formais
chamam-se: a significância (o conteúdo significativo) da palavra, uma
“linguagem contida”, que “procede com cautela tranquila e exatidão” e escolhe
cada palavra na medida justa, “sem conceitos assessórios”. Schiller Vale-se de
conceitos análogos: a poesia enobrece, dá dignidade ao afeto; é “idealização de
seu objeto, sem a qual deixaria de merecer seu nome”; evita “raridades”
(singularidades) que contrastariam com o “idealmente universal” (FRIEDRICH,
1978, pp. 20-21)
Essa definição de
poesia espelha a concepção iluminista de indivíduo: autocentrado, munido de sua
razão instrumental. Algo que iria ruir no fim do século XIX, juntamente com
qualquer intenção de comunicar e confortar, uma vez que, os poetas rompem com a
sociedade e se exilam hermeticamente na dissonância: desistem de transmitir um
sentido, em nome de um efeito. Mas esta dissonância é contingência da
Modernidade. Com isso, a forma tenta condensar um Zeitgeist. Uma formação discursiva orienta em parte a preferência
por determinadas construções figurativas, a coadunação praticamente inevitável
entre a unidade espiritual de uma época e suas formas fixas e temáticas criam
uma sensação de transparência do signo. Isso
leva a se confundir forma fixa com poesia, rima com poesia. No senso comum esta
associação é em grande parte irreversível. Assim como língua e gramática são
para maioria dos falantes conceitos sinônimos, quando na verdade se opõem: a
gramática tenta conter a tendência para a variação da língua, normatizando-a.
Cada época normativa a poesia para adequá-la a uma formação ideológica, e
metonimicamente a parte formal é tomada como o todo. Mas uma formação
ideológica nunca é plena, existem margens de resistência que atrai a poesia, e
a partir desse ponto de resistência rasga-se, para falar com Deleuze e Guatarri
(1977), linhas de fuga para fora do sentido.
Deste modo, um período
histórico, com seus conjuntos de valores, traz representações estéticas que
repercutem na estrutura superficial (formas fixas, rimas) e no fundo temático,
estes mesmos conjuntos de valores. Com isso, o sentido imediato origina-se
desta coincidência cosmológica. Logicamente essa afirmação não é nova, e
poderíamos ir mais longe dizendo que isso valeria para grande parte dos
produtos culturais de determinada época. Mas no caso da poesia, mesmo quando
está integrada ao Zeitgeist, ela
destoa, para efeito de sentido, em menor ou maior grau do fundo histórico. Pois
uma das obrigações da poesia é “idealizar o seu objeto”, artificializá-lo
estrategicamente no plano do enunciado para abranger e estruturar o maior
número de situações. Por exemplo, um “eu” que parte de uma enunciação urbana
para compor um enunciado em que se apresenta virtualmente como pastor de
ovelhas. Neste caso, essa temática mesmo
destoante na relação imediata de enunciado e enunciação, é prevista, assim como
as formas que a acompanham, e especificamente neste exemplo, até mesmo
determinado nomes e paisagens eram recomendados e orientados pela fatura de
valores vigente.
Mas a poesia depende da
imprevisibilidade, e por isso sua tendência a se artificializar radicaliza-se
ao ponto de não ser controlada ou orientada por uma “unidade espiritual”. No
entanto, existem poetas e poemas que tendem a se integrar completamente ao
fundo histórico, e na maioria das vezes desaparecem com ele. Como não separamos
forma e conteúdo, dizemos que há rimas e formas fixas que estão em ressonância com
essa formação discursiva (rimas instituídas), e por isso, é praticada com certa
automatização, mas há rimas e formas que se recortam em dissonância ao fundo
(rimas que resultam de uma busca intelectual destoante). Para que isso fique claro, ou mesmo para que
ganhe mais complexidade, iremos usar uma argumentação de Derrida feita para um
contexto diferente, mas que adaptaremos para nossa discussão. Trata-se de uma
passagem sobre a nudez, feita em seu O
animal que logo sou:
O animal,
portanto, não está nu porque ele é nu. Ele não tem o sentimento de sua nudez.
Não há nudez “na natureza”. Existe apenas o sentimento, o afeto, a experiência
(consciente ou inconsciente) de existir na nudez. Por ele ser nu, sem existir
na nudez, o animal não se sente nem se vê nu. Assim, ele não está nu. Ao menos
é o que se pensa. Para o homem seria o contrário, e o vestuário responde a uma
técnica. Nós teríamos então de pensar juntos, como um mesmo “tema”, o pudor e a
técnica. E o mal e a história, e o trabalho, e tantas outras coisas que o
acompanham. O homem seria o único a inventar-se uma vestimenta para esconder
seu sexo. Só seria homem ao torna-se capaz de nudez, ou seja, pudico, ao
saber-se pudico porque não está mais nu. (DERRIDA, 2002, pp. 17-18)
O animal não é nu
porque sempre esteve nu, não existe a possibilidade de se despir: uma
consciência da não nudez, uma distinção entre um antes e um depois, levaria a
um evento de escolher entre uma situação e outra, e de agregar valor a cada um
dos estados: nudez e não nudez. Quando
trazemos para o nosso contexto dizemos que existe uma rima instituída em um
plano no qual a “não-rima” nunca é prevista, por isso, usa-se a rima sem saber
do seu antes e sem vislumbrar um depois. A rima se torna, falaremos a partir de
agora englobando as formas fixas, a via exclusiva para o poema, antes mesmo de
este ser julgado como provedor de poesia. Assim, neste ambiente a rima não pode
ser uma opção, ela é uma natureza inquestionável para se chegar ao poema. O
poema é visto como a própria rima. O fazer poético parte de uma adesão
inconsciente e estagnada. Este plano de
fundo estático e estagnado seria a nudez nunca vestida com outra
possibilidade. Somente o investimento de
uma técnica não-prevista poderia fazer um corte de um antes e depois, que faria
da rima um produto deliberativo, e não apenas imperativo. Lembremos o exemplo
por nós na primeira parte do artigo: Manuel Bandeira exercitava as rimas apenas
como algo dado, seu poder de decisão se restringia em seguir as rimas dadas por
Camões e as rimas dadas pelo sistema Parnasiano, sua decisão girava apenas no
campo restrito de uma autoria mínima, e nunca alcançava o não-dado.
Com o livro Libertinagem Manuel Bandeira desvestiu a
pele estagnada e estática da rima instituída, experimentou a não-rima,
estabeleceu zonas de valor entre um antes e depois, ou um sim e um não, ou melhor
ainda: quando melhor sim e quando melhor não. O poema não é mais
apenas a rima, ele pode ser a ausência de qualquer rima. Rimar passa ser uma
decisão que atende a um efeito poético. O modernismo e a modernidade na poesia
instauraram a não-rima como um fundo recomendado, e seguindo a lógica do
superego invertido, rimar passou a ser o destoante, isso talvez explique
parcialmente a volta da rima nesse contexto “pós-tudo-mudo”.
Do itinerário retomemos na memória a passagem que Bandeira fala que
teve mais dificuldade para compor fora do metro e da rima, pois alguns versos
já saíam redondos, rimados e metrificados. Mas ao tentar fazer os seus
primeiros versos-livres se deparou com dilemas que não conseguiu resolver
prontamente, exigindo menos automatismo. Com isso, escrever sob o regime da
rima instituída pressupõe ter uma parte do poema fornecido por convenção: o
“não uso de hiato entre uma dicção e outra”, o “não uso de rimas no
particípio”, e o principal: o “sempre uso de rimas e formas fixas”. Isso em
grande parte influencia no poema e no gênero, a poesia está na matéria que faz parte
do poema, mas a matéria nunca precisará ser um
tipo de poema para ser poesia. As
“emendas” analisadas por Manuel Bandeira que reproduzimos no Itinerário esclarecem essa proposição,
pois radicalmente Bandeira afirma que em um dístico existe poesia e no outro
não. Ora, os dois dísticos são versões diferentes de um texto, considerados
poemas pertencentes à mesma forma fixa e ao mesmo esquema de rimas, mas uma
simples mudança na matéria, umas palavras por outras, foi suficiente para o juízo
categórico de Bandeira (1984): “com esta diferença capital: no segundo verso há
poesia, no primeiro não” (p.32). Poemas escritos em formas fixas e em regime de
rima instituída deixam menos espaço e liberdade para se trabalhar a matéria:
menos espaço para a imprevisibilidade.
Assim, a poesia é uma
entidade amorfa, que depende provisoriamente de uma forma, pois neste sentido
amorfa não significa ausência de forma, mas a garantia inicial de sua
indefinição. Ou como diria Jean-Luc
Nancy (2005): “a poesia não coincide consigo mesma: talvez seja essa não-coincidência,
essa impropriedade substancial, aquilo que faz propriamente a poesia” (p.11). A
impropriedade substancial se aguça no contexto não instituído do fazer poético,
pois o percurso será menos programado, e entendendo que a poesia não é um
espírito suspenso no ar, este percurso,
o processo, é a própria poesia.
O CORPO DA MORTE
A não determinação de
um poema por uma forma fixa incentiva um movimento de iconicidade: o conceito
se desenha visualmente no próprio poema, as palavras tendem a reproduzir na
materialidade linguística o evento. Vejamos dois poemas de Manuel Bandeira
sobre o mesmo tema, a Morte, mas com tratamentos formais diferentes. Os poemas
são “A morte absoluta” e “Canção para minha Morte”, o primeiro publicado em Lira dos Cinquenta Anos e o segundo em Estrela da Tarde. No primeiro poema não
temos nenhuma adesão a uma forma fixa ou rima, ou seja, nenhuma parte do poema
é adiantada por convenção, e o poeta tira proveito disso escolhendo um verso
curto, constituído apenas pelo verbo “morrer”.
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Logo a morte absoluta anunciada no
título começa a se materializar: o verbo intransitivo é seguido de um ponto,
que encerra ainda mais a intransitividade, e também qualquer expectativa de
transcendência, aliás, as locuções do segundo verso delimitam a morte no
biológico e no espiritual, e o advérbio de modo posto secamente e também
pontuado, serve como uma pá de cal. Uma vez morto o corpo e a alma restam
apenas os rituais e os despojos físicos:
Morrer
sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.
O
verbo morrer se repete mais uma vez e se repetirá no inicio de todas as
estrofes, como se eu lírico soubesse que há diversas formas de sobrevida, que
precisam ser atacadas e vencidas. Os
versos são mais longos porque começam a se ocupar em degradar os componentes
materiais de uma última presença: o corpo frio no caixão, as flores que
metonimicamente anunciam o destino da carne. Em seguida, a degradação se
completa, porque além da degradação sob a terra, o eu também ambiciona a sobre
a terra:
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
O
primeiro verso se alonga livremente e a reticência pontua uma vontade de ir
além, como se fosse a própria caminhada interrompida com as perguntas descrentes
e retóricas. Na estrofe seguinte as marcas mnemônicas que possam permanecer são
gradativamente eliminadas com a repetição do pronome indefinido e excludente,
que tenta varrer a imortalidade mantida pela afetividade dos que ficam. Enfim, apagados os traços físicos e mnemônicos
só falta eliminar o último traço de uma existência:
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.
Nos
últimos versos temos a intransitividade verbal amplificada ainda mais com o uso
de advérbios de intensidade e grau, e em três versos narrativos o “eu”
esclarece o que seria essa morte “tão” plena: a histórica. O desejo de seu nome
se tornar um significante opaco, apenas uma mera sequencia mineral sem conotação.
Com isso, vemos o poema conceituar uma morte sem mistificação, sem transcendentalismos,
que é desenhada iconicamente na superfície do poema, que tem uma matéria
linguística descarnada, na qual as palavras resistem à figuração, os recursos
metafóricos são recusados em detrimento de recursos metonímicos e gradativos,
conseguindo corporificar uma morte que seja apenas uma desintegração biológica
do corpo e um apagamento histórico do indivíduo e do sujeito. Prova disso é que a morte não aparece no
decorrer do poema como substantivo, mas apenas como um ato, uma ação intransitiva.
Já
no segundo poema temos a opção por uma forma fixa indicada no próprio título
“Canção para minha Morte”, a canção é um gênero bastante popular e isso não
passou despercebido:
Bem que filho do Norte,
Não sou bravo nem forte.
Mas, como a vida amei,
Quero te amar, ó morte,
- Minha morte, pesar
Que não te escolherei
A
primeira estrofe começa como tivesse ponderando uma fala anterior “bem que”
poderia ser forma abreviada do termo “se bem que”, algo que nos parece
confirmado pela preferência por “pesar” em vez de “apesar”. Este “bem que”
poderia está secundando a uma voz da tradição popular, e essa tradição apresenta-se
como se fosse a própria rima “forte/norte”. Sabemos que os ditados ganham mais
força quando estão rimados, e contra essa força de verdade da rima que o “eu” se
nega: “não sou não nem bravo nem forte, apesar de ser filho do norte”. Em
seguida a morte é apresentada como sua interlocutora por meio do pronome “te”,
então vemos a primeira marca de personificação dela. E o diálogo prossegue:
Do amor tive na vida
Quanto amor pode dar:
Amei, não sendo amado,
E sendo amado, amei.
Morte, em ti quero agora
Esquecer que na vida
Não fiz senão amar.
Aqui nesta estrofe o “eu” tenta fazer um jogo de ideias que lembra
também cantigas populares, o recurso é feito pela repetição e inversão de
frases “Amei, não sendo amado/sendo amado, amei” parece uma tentativa de
transferir o sentido positivo de uma para a outra: seu amor pela vida
transferido para morte, por meio da palavra. Apesar de não ter rimas próximas o
ritmo acelera e diminui conforme as pausas, como que marcando um momento de
euforia, seguido de uma pausa reflexiva. Na última estrofe a sonoridade é mais
acentuada:
Sei que é grande maçada
Morrer, mas morrerei
- Quando fores servida
Sem maiores saudades
Desta madrasta vida,
Que todavia amei
Percebam
que depois do travessão os versos, pelo recurso enjambement, formam uma fala
contínua, com uma rápida pausa na vírgula. Os sons são provocados pelas rimas
que não coincidem necessariamente com a grafia “Maçada/Saudade”, além das
outras “servida/vida”, “morrerei/amei”. A
composição fecha-se de forma redonda. E com isso o conceito de morte desta
opção formal é mais figurado, mas de uma figuração de cunho popular: a personificação
da morte e da vida, como nas histórias e lendas medievais, como ocorre nos
chamados até então Romances,
composição em verso medieval que o própria Bandeira chega a praticar. O tom receptivo, e as rimas atuam sobre este
tom, em relação à Morte também lembra um imaginário popular medieval, que vê na
morte o momento em que a sabedoria e a liberdade se materializam.
Para
terminar, lembramos que os dois poemas foram escritos em um período pós-Libertinagem, ou seja, antes de iniciar
os poemas havia uma liberdade maior para se trabalhar a matéria. Esse ponto de
partida não delimitado por um regime de rimas-métrica-formas instituídas
permitiu que o eu lírico desenhasse linguisticamente, na superfície mineral do
papel, o conceito e o corpo de cada morte.
REFERÊNCIA:
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
______ O itinerário de pasárgada. São Paulo: Record, 1984.
CANDIDO,
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FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978.