sexta-feira, 1 de maio de 2015



O PACTO AUTOBIOGRÁFICO: ALGUMAS QUESTÕES







                                                                                                     
A ascensão da Teoria Literária e seu desejo de autonomia levaram ao encerramento do conceito de texto literário em dimensões puramente intrínsecas. Algo perfeitamente compreensível quando contextualizamos que esta ambição partiu do esforço de transformar a Teoria Literária em uma ciência autônoma, tal como a Lingüística. Com base nesta premissa iniciou-se uma verdadeira caça ao “eu”, a fim de garantir uma pretensa cientificidade, de conservar uma imparcialidade e uma universalidade que hoje sabemos serem ilusórias.  Além disso, correntes de pensamento que tentavam ler e interpretar obras ficcionais a partir de elementos extrínsecos foram condenadas: uma delas a crítica autobiográfica que existe desde o século dezenove. Não podemos negar que o radicalismo de separar o texto do seu contexto cultural, autoral e social, para se limitar ao co-texto, à materialidade lingüística tenha gerado frutos. Gerou. Forneceu-nos um amplo suporte técnico de análise e aguçou nosso olhar crítico para detalhes substanciais do texto. Por outro lado, a manipulação apenas dos elementos intrínsecos do texto literário resultou em essencialismos. Na fé de que o texto vale por si, de que existe um substrato imutável que garante qualidade estética à obra literária. O efeito danoso disso é a crença na existência de uma hierarquia natural, que permite separar a boa e a má literatura com base na qualidade interna do texto. E no âmbito da teoria asseveraram-se os limites entre o fato e o ficcional, incentivando uma pureza metodológica e epistemológica.
Com o advento dos Estudos Culturais e outras correntes que privilegiam a chave do social e do cultural como válida para interpretar o texto literário, iniciou-se um movimento de abertura do texto, e da relativização de valores “substanciais e imobilistas”. Permitindo que disciplinas que valorizam a figura do escritor e do seu ambiente, caso da crítica genética e autobiográfica, retomassem a cena.   A respeito disso Eneida Maria de Souza diz:

Os limites provocados pela leitura de natureza textual, cujo foco se reduz à matéria literária e à sua especificidade, são equacionados em favor do exercício de ficcionalização da crítica, no qual o próprio sujeito teórico se inscreve como ator no discurso e personagem de uma narrativa em construção. A proliferação de práticas discursivas consideradas “extrínsecas” à literatura, como a cultura de massa, as biografias, os acontecimentos do cotidiano, além da imposição de leis regidas pelo mercado, representam uma das marcas da pós-modernidade, que traz para o interior da discussão atual, a democratização dos discursos e a quebra dos limites entre a chamada e alta e a cultura de massa. (SOUZA, 2002, pp. 111-112).

O que se sugere acima é a contaminação salutar entre o objeto literário e a teoria. O discurso teórico assume uma autoridade quando de posse de um objeto domesticável pela manipulação de elementos materiais, por isso, a preferência pela superfície lingüística, a soma e o rastreamento de dados costumam oferecer uma segurança empírica. E o empirismo ambiciona ser irrefutável. Há momentos em que as ciências humanas, e isso incluem a Teoria Literária, padecem da culpa de não serem exatas e passam a importar epistemologias aparentemente mais rigorosas e menos falíveis. Quando isso acontece a ficcionalização do teórico serve como um elemento modalizador. A arte relativiza a racionalidade intransigente da ciência, expande as fronteiras dos conceitos. Pois existe algo que só “o saber narrativo” pode comunicar. Ou continuando a dizer com Souza (2002): “o saber narrativo, ao retirar do discurso crítico o invólucro da ciência” passa a se concentrar “na permanente construção do objeto de análise”, colaborando para denunciar o caráter enunciativo do discurso da ciência.  Pois ao combinar a ficção e a teoria, “o teor documental” e “o simbólico” do objeto, ocorre a desautorização do sujeito totalizador da ciência, uma vez que a ficção localiza esferas da vida cotidiana, das pequenas histórias encobertas, da especificidade do local, do refugo, que não têm lugar nos grandes projetos especulativos e universalistas.
A desmistificação do factual, a inserção de um sujeito crítico que se admite parcial não significa perda de eficiência, pelo contrário, é exatamente para ganhar mais mobilidade e penetrar esferas de difícil acesso, que se divide o sujeito ilusoriamente integral em pequenas partes. Algo assim já era defendido por Walter Benjamin ao dizer que a verdade traz um lado esotérico, que o pensamento retilíneo não pode apreender. Por isso, inspirado em Goethe, foi um dos primeiros a defender a aproximação da ciência e da arte. A arte, com sua singularidade e complexidade, ajuda o sujeito analítico a penetrar a verdade que consiste na espessura, naquilo que escapa: na sobra, no que há de único e intraduzível de cada objeto. Desse modo, antes de ser apenas uma estetização da teoria, ou uma simples mudança de suporte: o conteúdo científico na forma atrativa do ficcional, ou o inverso, esta contaminação entre ficção e teoria é uma forma de atingir um patamar de conhecimento que ainda não se revelou. Ou melhor: não se trata de alternar textos literários que são meros invólucros de idéias com teorias que são esteticamente inteligíveis. O ideal é que essas fronteiras sejam diluídas, que as polaridades sejam abandonadas em nome de discursos suficientemente transdisciplinares, ao ponto de criarem novos locais de enunciação. 
Diante disso, as reações adotadas diante da tentativa de aproximar autobiografia e ficção, fatos e criação estética, são radicais, pois ou se tenta traduzir uma parte na outra, capturando o factual fidedignamente no campo narrativo, ou buscam-se os extremos: há os que não acreditam na verdade, e os que acreditam apenas na ficção. Como Philippe Lejeune diz:

Os primeiros estão convencidos de que o compromisso de dizer a verdade não tem nenhum sentido. Que é um engodo, no plano do conhecimento, e um erro, no plano da arte. Recorrem seja à psicologia (crítica da memória, ilusões da introspecção), seja à narratologia (toda narrativa é uma fabricação). Como se pode ainda, no século da psicanálise, acreditar que o sujeito seja capaz de dizer a verdade sobre si mesmo? A autobiografia perde em todos os campos: só consegue acumular deficiências. É uma ficção que se ignora, uma ficção ingênua ou hipócrita, que não tem consciência ou não aceita ser uma ficção, e que,  de outro lado, se sujeita a restrições absurdas que a privam dos recursos da criação, única possibilidade de se chegar à verdade. (LEJEUNE, 2008, p. 103)

Já os segundos são aqueles que não desprezam o autobiográfico, mas só  reconhecem seu valor quando este atinge formas gerais “que ajudem os leitores a estruturar sua identidade”, transcendendo o absolutamente pessoal. Apenas completamente transfigurado no mito e na literatura, o autobiográfico pode ser considerado.  Contrapondo-se ao primeiro argumento contra o autobiográfico, Lejeune advoga que o fato da base da identidade passar pela narrativa, por uma construção da linguagem, não anula a oposição verdade/mentira. Pois a promessa de dizer a verdade é constitutiva das relações humanas e cria “campos discursivos” que orientam a sociedade. A autobiografia, assim como outros campos discursivos, tenta alcançar a verdade, e essa ambição, já por si, estabelece um interesse diferenciado do leitor, pois, durante o tempo da leitura, a fé em que a verdade é acessível tem que ser alimentada e minimamente conferível factualmente. Afinal, já algum tempo sabemos que existe vida fora da linguagem. Talvez no nível ontológico a verdade, no sentido transcendental, não seja mesmo apreensível, mas na prática e nos atos que sustentam o cotidiano ela é indispensável. Para Lejeune, o fato de a identidade ser uma construção imaginária, e sermos indivíduos que se manifestam constantemente a partir de papéis ideológicos e discursivos, não nos dispensa de optarmos entre em estilizar esse imaginário ou simplificá-lo. Isto é, podemos deliberar sobre jogos de fingimento e explorar suas possibilidades improváveis na ficção, ou podemos prolongá-los sendo fiel a determinados campos discursivos, que mesmo não intencionando uma verdade singular e universal, ao menos seja fiel a verdades provisórias que sustentam nossa identidade.
Ao segundo argumento, de que a autobiografia se restringe muito ao individual, e por isso a ficção é bem mais eficiente para explorar o autobiográfico, Lejeune modaliza que não se deve ver a autobiografia como gênero condenado ao restrito, ao anedótico. Mesmo aquela “escrupulosamente preocupada com a verdade” pode alcançar a generalidade, um ideal arquetípico que permita angariar projeções e identificações de um maior número de leitores. A intensidade que o investimento estético dá ao autobiográfico, não obriga sua manifestação apenas pelo viés ficcional, para Lejeune isso cria inclusive um paradoxo: reivindica-se o valor autobiográfico, mas o nega no campo da realidade, fazendo com que o pacto autobiográfico fique fora da obra. Ou seja,  muitas vezes a obra autobiográfica se aproxima tanto do literário que se torna irreconhecível no nível do significante. Há nisso uma leve “superstição” de que o esteticamente trabalhado chega às zonas mais profundas do “eu”, e com isso, o autobiográfico que se veste com a ficção é mais “verdadeiro”: “o intenso parece ‘verdadeiro’, e o verdadeiro só pode ser autobiográfico”. (LEJEUNE, 2008, p. 106). A questão é complexa, e Lejeune não descarta a necessidade de se definir no mínimo dois tipos de autobiografias: um tipo direto e outro figurado.
Há também nessa discussão o temor de que o autobiográfico pressuponha  confissão, associado muitas vezes ao indiscreto. O que leva alguns a se apropriarem do pacto autobiográfico, mas não assumi-lo. Mas, segundo Silviano Santiago, é possível diferenciar o confessional e o autobiográfico, pois no confessional está em jogo a “expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica”. (SANTIAGO, 2008, p.174). Por isso, trabalha para reduzir a zero o confessional, mas sem dispensar o autobiográfico, pois para ele não interessa “mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam.” (SANTIAGO, 2008, p.175). Com isso Santiago busca a contaminação entre ficcional e autobiográfico, pois a inserção do autobiográfico no ficcional, de forma criativa e anárquica, gera uma tensão constante, que suspende os limites entre ambos, e abre novas possibilidades para o escritor. É claro que neste caso o ponto de partida para Santiago é a ficção, pois o depoimento é feito da perspectiva do ficcionista e não há uma preocupação mínima com a veracidade e o factual.
Mas no fim de tudo, a questão do ficcional versus autobiográfico se resolve no pacto. A questão talvez seja complexa porque há a tendência de se pensar que confrontar autobiografia e ficção seja o mesmo que confrontar: o documental, índices extratextuais, com o figurado. Mas estas instâncias são facilmente deslizantes, e se fixar nelas para explorar a relação ente literatura e autobiografia seria algo inócuo. Há de se ter fé no pacto, por mais que às vezes fiquemos tentados a rastrear indefinidamente marcas e mais índices fora e dentro do texto. No entanto, o próprio Lejeune um dia duvidou se somente o pacto era suficiente para estabelecer o autobiográfico: “Como pude dizer: ‘o pacto autobiográfico é necessário [mas] não é suficiente’. Necessário, obviamente: cabe ao autor declarar sua intenção, não ao leitor, fazer suposições.” (LEJEUNE, 2008, p. 75).  E à frente justifica porque chegou a duvidar do pacto: estava ofuscado com o fato de catalogar e levantar um corpus, em definir e localizar marcas explícitas de pacto autobiográfico que não percebeu “que o compromisso pode ser assumido de outra forma, de fato, implicitamente, pelo simples emprego do nome próprio”. (LEJEUNE, 2008, p. 75). Ou seja, o nome cruza o discurso com a pessoa, e dispensa a tarefa invencível de verificar se “as transcrições” extratextuais se realizam veridicamente no texto, e também dispensa a análise do funcionamento interno do texto. O pacto é acordado implicitamente e explicitamente com o leitor, a fim de posicioná-lo em sua abordagem, de direcioná-lo para determinado campo discursivo.
Assim, o autobiográfico não pode se prender a uma seqüência de fatos ligados a uma pessoa empírica no mundo.  Afinal, mesmo se esses fatos fossem verídicos, teríamos poucos recursos para comprová-los, com isso, a opinião última continuaria sendo a do autor-narrador.  Isto é, continuaria valendo o dilema de confiar ou não, de aceitar ou não o pacto. Dessa forma, a sinceridade deve ser uma promessa, mas sua efetivação é vivenciada pelo leitor no decorrer da leitura, é na coerência estilística que o leitor se sentirá à vontade ou não para embarcar naquela versão de realidade, de outro, e tomá-la como realidade para si. A respeito disso Wander Melo Miranda esclarece:

Apesar do aval de sinceridade, o conteúdo da narração autobiográfica pode perder-se na ficção, sem que nenhuma marca decisiva revele, de modo absoluto, essa  passagem, porquanto a qualidade original do estilo, ao privilegiar o ato de escrever, parece favorecer mais o caráter arbitrário da narração que a fidelidade estrita à reminiscência ou caráter documental do narrado. (MIRANDA, 1992, p. 30)
              
Mas mesmo se possível reconhecer alguma marca desta passagem, isso teria serventia? Pois provavelmente essa marca nos remeteria basicamente a outra ficção: a rede ficcional criada em torno do escritor. Ou como diz Souza (2002): “a figura do escritor substitui a do autor, a partir do momento que ele assume uma identidade mitológica, fantasmática e mediática”. (p.116). O escritor já é por si um personagem envolto em narrativas criadas em co-autoria entre mídia, público, leitor e o próprio escritor. O imaginário do leitor se esforça para preencher o espaço entre a obra e o autor. Este esforço aumenta quando parte de um escritor em potencial que procura modelos para se espelhar. E na tentativa de espelhar, reflete sua imagem além do espelho. A vida de um escritor, sua trajetória, em alguns casos pode ser tornar mais atrativa do que obra em si. E nos dias de hoje, com a necessidade de exposição na mídia, para atrair mais leitores, o autor se coloca constantemente como ator: exemplos radicais disso são as performances públicas de alguns escritores.
 Assim, os poucos traços autobiográficos reconhecíveis pelo leitor, intactos da passagem quase inevitável ao ficcional, não deixam de ser também, de alguma forma, ficcionais. E não estamos confundindo “narrativa com ficção”, como aconteceu em um primeiro momento com Lejeune: “me confundo ao associar a narrativa à ficção, erro grosseiro. Hoje sei que transformar sua vida em narrativa é simplesmente viver. Somos homens-narrativas. A ficção significa inventar algo diferente dessa vida.” (LEJEUNE, 2008, p. 74).  Na maioria das vezes a fabricação do escritor, se dá contra a identidade da pessoa do autor, sua autonarrativa. Narramo-nos freqüentemente, isso inclui uma parcela de invenção, porém, essa parcela não compromete nossa identidade, pelo contrário, ajuda a firmá-la, por isso, não é adequado chamá-la de ficção, uma vez que esta se inicia com o afastamento deliberado desta “ficção constitutiva” que nos mantém. No caso de alguns escritores, podemos dizer que há uma carga mínima de deliberação, ou ao menos autorização, para que se criem narrativas diferentes da  “narrativa de si”, entrando para o campo da invenção calculada. 
Mas até quando se inventar deliberadamente para determinado público leitor pode ser tolerado? Existe algo que regule eticamente isso? Tentar responder a estas perguntas ou mesmo levantá-las nos remeteria a uma espécie de ética do pacto. Acreditamos que essa ética do pacto ainda não foi sistematicamente formulada. Mas já podemos identificar algumas falas que desaprovam certos abusos do pacto autobiográfico.  

UMA ÉTICA DO PACTO?              

Lejeune, ao se referir ao uso constante pelo romance, um gênero de prestígio, do autobiográfico, um gênero que ainda sofre preconceitos, lança esta fala:

Usufruir dos benefícios do pacto autobiográfico sem pagar nenhum preço por isso pode ser uma conduta fácil, mas também exercícios irônicos plenos de virtuosismo ou abrir caminho para pesquisas das quais a autobiografia “autêntica” poderá tirar proveito. Mas os escritores que freqüentam essa zona, justamente porque estão sempre esbarrando na autobiografia, são os que mais violentamente a depreciam e a renegam: sobretudo que ninguém pense que eles a praticam! (LEJEUNE, 2008, p. 109).       

 O preconceito que ainda se tem em relação ao gênero autobiográfico leva alguns escritores a negligenciar os tributos éticos do pacto. Lejeune não condena a hibridização entre autobiografia e romance, apenas lamenta a violência com que se nega o autobiográfico. E alerta que a crença na supremacia do estético incentiva o abandono de outras responsabilidades: “na tríade o Belo, o Bem, o Verdadeiro, só o primeiro termo diz respeito ao escritor atual que pensa não ter obrigação de ser, em sua obra, nem moral, nem “verídico”, ou antes, ser tudo isso automaticamente pelo simples fato de ser belo.” (LEJEUNE, 2008, p.109). Ou seja, para Lejeune o autobiográfico toca fatalmente em “problemas éticos”, e no momento em que se junta literatura e autobiografia, não se deve simplesmente delegar um, em detrimento do outro, pelo contrário, o grande desafio é saber combinar os dois: o belo e o verdadeiro. Pois estes não são quesitos que se repelem, inclusive, houve um tempo em que o belo e a verdade eram inseparáveis. Logicamente não estamos defendendo um retrocesso: amarrar novamente o estético ao ético de modo intransigente. Aliás, achamos que a contaminação dos gêneros de um modo “anárquico e criativo” enriquece ambas as partes. Alertamos apenas para o despudor de uma fé formalista que tenta se isentar dos compromissos de inferência que o pacto exige. Ou melhor: atrai-se o leitor aliciando sua credulidade, a explora, depois foge sem pagar a fatura alegando ter feito tudo em nome da honra do estético. Não estamos dispensando o estético, mas evitando fazer hierarquia. Entendemos que opções estéticas são motivadas por critérios amplos, que inclui valores ideológicos e culturais, trazendo no conjunto a ética.
Talvez a complicação esteja no fato de alguns escritores e teóricos suplantarem contextos, para se encerrarem no absoluto do estético, por temor de considerá-lo mais um valor discursivo, que também passará. Um texto que ilustra bem isso é “O autor como produtor” de Walter Benjamin, na qual este não tem nenhum temor em dizer:  
Nem sempre houve romances no passado, e eles não precisarão existir sempre, o mesmo ocorrendo com as tragédias e as grandes epopéias. Nem sempre as formas do comentário, da tradução e mesmo da chamada falsificação tiveram um caráter literário marginal: elas ocuparam um lugar importante na Arábia e na China, não somente nos textos filosóficos como literários. Nem sempre a retórica foi uma forma insignificante: ela imprimiu seu selo em grandes províncias da literatura antiga. Lembro de tudo isso para transmitir-vos a idéia de que estamos no centro de um grande processo de fusão de formas literárias, no qual muitas oposições habituais poderiam perder sua força. (BENJAMIN, 1994, pp. 123-124)  

                       Antes deste excerto, Benjamin desenvolvia a relação entre tendência e qualidade. Que interessa muito para nossa discussão. Pois para ele a qualidade sem a tendência, não tem sentido. Ter qualidade tem a ver com a tendência correta, e vice e versa.  Pensar de outro modo seria retroceder à esterilidade de querer divisar forma e conteúdo. Pois as escolhas ideológicas já trazem as formas, na verdade, elas nem sequer poderiam ser apreendidas sem as formas, trata-se de algo indissociável: tanto que hoje o romance é altamente prestigiado, mas no século XVII era algo sem valor. Assim, ao dizer tendência “correta” pensamos que cada época traz suas técnicas narrativas próprias, porque mudanças técnicas pressupõem mudanças de idéias. Não se trata de engajamento, de subordinar uma forma a um conjunto ideológico e político específico. Mas apenas acreditamos que as idéias não circulam no vácuo, ou se manifestam por telepatia. Deste modo, é justo que determinados contextos culturais e históricos privilegiem campos discursivos que atendam melhor suas demandas de pensamento. Isso é algo inevitável e de algum modo irreversível. Como por exemplo: a literatura não tem mais os mesmo privilégios do século XIX, isso é lamentável para os que gostam de literatura, mas irreversível, ao menos por enquanto. Assim, quando os romancistas passam a adotar com bastante freqüência o pacto autobiográfico, mas o negam com  violência, temos um “problema ético” no sentido de que existe má fé. Ou melhor: o esbarrar constante no autobiográfico atende uma demanda de pensamento, alguns romancistas querem atendê-la e usufruírem dela sem contribuir com sua evolução discursiva.
O choque do autobiográfico com a ficção deveria ser encarado como uma oportunidade cada vez mais inevitável e necessária de estrear um novo campo discursivo. Mas, preferem encerrar tudo no estético. O motivo disso talvez seja a angústia: enfrentar a necessidade de fundar um novo campo discursivo significa sair do chão seguro de um gênero e se lançar à deriva.  Não nos lembramos de outro escritor que expressou tão bem essa angústia além de Truman Capote, que com seu A sangue frio estreou um campo discursivo, mas é em Música para camaleões que expressa sua angústia resultante dessa atitude, ao usar a célebre metáfora do chicote: Deus, ao nos dar um talento, também nos deu um chicote. Não usar o chicote, neste caso, é evitar problematizar as implicações decorrentes do amalgamar entre literatura e autobiografia. Neste ponto podemos lembrar Silviano Santiago que, ao falar de sua experiência como escritor, afirma nunca ter evitado “a contaminação” do ficcional e autobiográfico, mas, em compensação, nunca se permitiu usá-la de modo acrítico, não caindo no confessional. Insatisfação semelhante compartilha Todorov, que lamenta a forma como o autobiográfico é tratada por alguns escritores:
 
A literatura (nesse caso, diz-se, preferencialmente, “a escrita”) tornou-se apenas um laboratório no qual o autor pode estudar a si mesmo a seu bel-prazer e tentar se compreender. É possível qualificar essa terceira tendência, após as do formalismo e do niilismo, de solipsismo, de acordo com essa teoria filosófica que postula que o si mesmo é o único ser existente. A falta de verossimilhança dessa teoria, de fato, a condena à marginalidade, mas isso não impede que ela se torne um programa de criação literária. Uma de suas variantes recentes é o que se chama de “autoficção”: o autor continua a se dedicar à evocação de seus humores, mas, além disso, se libera de todo constrangimento referencial, beneficiando-se assim da suposta independência da ficção quanto do prazer engendrado pela valorização de si. (TODOROV, 2009, p. 43).     

A condenação de Todorov pode ser dura, e soar um pouco retrógrada, mas ela é exata enquanto constatação. Cabe perguntar o que deflagrou esse solipsismo. Por que este interesse em cultivar o eu, com aparência referencial, mas se anunciando como ficção? Podemos arriscar uma hipótese. Pois, se fala muito do desprestígio da ficção, mas nunca estivemos em um ambiente tão ficcionalizado. Ou melhor: vivemos em um  mundo cada vez mais virtual, isso cria uma sensação de irrealidade, que desperta um desejo para o “real”, com isso, tudo que traz o selo da realidade e do referencial se torna mais atrativo. A ficção pode se tornar um exercício redundante e ocioso em um contexto sociocultural em que as histórias surgem ao vivo, ou on-line, vinte e quatro horas na TV e na internet. Eu posso ler um romance policial ou acompanhar no noticiário a cobertura do caso de algum crime envolvendo celebridades. A segunda alternativa tem o peso da realidade, mesmo se oferecendo pelo filtro dos discursos apelativos e sensacionalista dos jornais, também uma forma de ficção. Mas aí está o paradoxo, que Slavoj Zizek aponta: queremos a realidade, mas só conseguimos absorvê-la pelas lentes da ficção.
O virtual que nos cerca tem como meta esvaziar os objetos de seu núcleo real, para nos oferecer apenas o semblante do real. Mas o limite deste acúmulo de semblantes, a culminância do Virtual, é tornar a Realidade mais um semblante, mais uma categoria irreal e imaterial, isso cria a angústia de estarmos fora da vida: “o que acontece no final desse processo de virtualização é que começamos a sentir a própria ‘realidade real’ como uma entidade virtual”. (ZIZEK, 2003, p. 25). Essa angústia de voltar ao Real passa a ser explorada. O resultado disso é o comércio frequente da sensação do real. Que se torna um produto valioso. Mas o Real desejado só pode ser consumado por intermédio do virtual. Sãos os recursos virtuais que nos levam a ambicionar uma realidade que antes da virtualização era inacessível. Porém, os recursos são também a segurança final. Um exemplo disso: a pornografia snuff que oferece o sexo e a violência em sua versão funesta, mas com a garantia final da mediação da tela, da imagem. O corte pode ser fatal, mas o sangue nunca espirrará no rosto do espectador. Assim, produtos que oferecem o real em suas versões extremas, mas, esvaziado da propriedade fatal, se multiplicam: café sem cafeína, cerveja sem álcool, sexo sem sexo (virtual), e a “ficção sem a ficção”, ou a “autobiografia sem o núcleo referencial”, ou melhor: o pacto autobiográfico sem suas conseqüências éticas.
Deste modo, talvez não seja errado interpretamos o solipsismo como um fenômeno que explora esse desejo pelo real, oferecendo semblantes de autobiografia, que usa os recursos virtuais da técnica, para redimensionar a intimidade em suas dimensões microscópicas. A intimidade é oferecida com a garantia final do intermédio da “suposta autonomia” formal. De certa forma, estes autores usufruem da virtualização, da autonomia que a convenção literária conquistou com a ajuda da Teoria Literária. A garantia de que até o senso comum está preparado para diferenciar narrador e autor, incentiva o abuso desta garantia. Estes “abusos” são produtivos quando questionam e problematizam as fronteiras das convenções ficcionais e teóricas, e dispensáveis quando estacionam em um dos lados, acreditando que o simples batizar, nomear de “ficção”, de “estético”, anula o debate, as responsabilidades.   
Para terminar, não vamos impor conclusões. Achamos melhor aproveitar o espaço de uma conclusão para citar rapidamente dois exemplos que ilustram bem as discussões acima: W. G. Sebald e J. M. Coetzee, ambos acadêmicos por longa data e consagrados na ficção, mostram como combinar de forma crítica a relação entre romance autobiografia e ficção. No caso W. G. Sebald, o autobiográfico aparece para criar um “efeito do real” que depois é direcionado para o Outro, isto é, ele insere dados autobiográficos facilmente reconhecíveis, além de elementos documentais fortes, como fotografias, para angariar a credulidade do leitor.  Estabelecendo um sutil pacto autobiográfico, para em seguida biografar personagens anônimos da história que, mesmo não tendo existido, já estão suficientemente envolvidos nas nuances referenciais, distribuídas na linguagem híbrida, que não temos necessidade de duvidar da veracidade do narrado. Sebald se vale do pacto autobiográfico para humanizar seu narrador no nível do significante, abandonando a perspectiva ubíqua do narrador tradicional, e a partir da memória compõe “o quadro das pequenas narrativas” que se escondem sob o discurso oficial da História.  Já J. M. Coetzee no seu último romance, Verão, vale-se do pacto para questionar os limites do autobiográfico e biográfico. Pois, o romance mostra exatamente os fragmentos de uma biografia fracassada: acompanhamos o biógrafo do próprio John Coetzee frustrando-se ao descobrir que a imagem construída de um escritor pode se distanciar bastante da pessoa do autor. O escritor Coetzee tenta nos convencer que por trás de uma grande obra, pode se esconder uma pessoa medíocre. Desconstruindo sua autoimagem e a imagem pública construída em torna dele, ou melhor, inserindo novas dimensões fictícias, no interstício misterioso existente entre obra e autor.
Enfim, Sebald e Coetzee são dois exemplos de autores que, ao combinar o pacto autobiográfico e a ficção, conseguiram estrear campos discursivos que não anulam as diferenças, e nem interditam o debate.     .       



BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1998.
COETZEE, J. M. Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAY, Louis. A literatura dos escritores: questões de crítica genética. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2007.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2008.
MARQUES, Reinaldo. O arquivamento do escritor. In: SOUZA, Eneida M. de; MIRANDA, Wander Melo (Org.). Arquivos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. p. 141-156. 
_____________________. A ilusão autobiográfica. In: Corpos escritos. São Paulo: Edusp, 1992.
SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. In: Aletria- Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, FALE/UFMG, n. 18, p.173-179, jul./dez. 2008. SEBALD. W. G. Austerlitz. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_____________. Os emigrantes. Rio de Janeiro: Record, 2002
SOUZA, Eneide Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.
TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009. 
 ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real!. São Paulo: Boitempo editorial, 2003.
       


O VALE DA DESTRUIÇÃO

Eu andei no vale da morte e só encontrei destruição. A morte perdeu a piedade por nós e nos abandonou para apodrecermos em v...