Um poeta pode evitar uma guerra |
Elias Canetti |
Elias Canetti (2010), defende a
linguagem como instância capaz de mediar e evitar a catástrofe, e o faz por
meio de uma escrita franca, sem o uso do vocabulário filosófico, no discurso
“Ofício de poeta” que encerra o volume de ensaios A consciência das palavras. A reflexão de Canetti centra-se nesta
frase: “Tudo, porém, já passou. Fosse eu realmente um poeta, teria
necessariamente podido impedir a guerra”. A frase é datada do dia 23 de agosto
de 1939, uma semana antes da guerra, escrita por um anônimo. Canetti conta que
a frase o intrigou durante muito tempo, por lhe transmitir uma grande
presunção, e pelo excesso de valorização da figura do poeta, já que lhe atribui
um poder que aparentemente este não tem.
No entanto, investigando-a em
amiúde Canetti percebeu que a frase, longe de indicar uma presunção, admite um
fracasso, e seu autor assume uma responsabilidade ética pesada demais, que apontaria
para uma solidariedade transbordante com o destino da humanidade. Esta atitude
inesperada leva o escritor búlgaro a refletir sobre a condição e o papel do
poeta em períodos sombrios. E em vez de reproduzir o pessimismo de costume que
preconiza o fim da literatura e da poesia, Canetti, mostra-se crente no poder
da palavra em sua instância estética. É verdade que, admite que a palavra poeta
(dichter) tenha perdido bastante do
seu prestígio, ao extremo de que aqueles que realmente merecem ser chamados de
poetas recusam o título. Por isso, Canetti ao utilizar o termo poeta não se
refere apenas aos que produzem poemas, mas aos que “escrevem” e insistem na
escrita, e mesmo em face de diagnósticos funestos, continuam a escrever
perseverantemente, apesar de inevitavelmente absorverem a amargura de seu
tempo.
Assim, para Canetti o poeta é o
escritor que acredita que a palavra conserva um poder insuspeitável, por isso,
a afirmação do escritor anônimo de que um verdadeiro poeta poderia ter impedido
a guerra, inicialmente irracional, passa a soar cada vez mais plausível para
Canetti:
É justamente essa pretensão irracional à
responsabilidade que me seduz e me põe a pensar. Dever-se-ia ainda acrescentar
que foi por meio de palavras – consciente ou inconscientemente empregadas,
pervertidas – que se chegou a uma tal situação que a guerra tornou-se
inevitável. Ora, se as palavras tanto podem, por que não se haveria de poder
impedir com elas a guerra? Não é absolutamente de se espantar que alguém que
mais do que os outros lida com elas esperasse também mais de sua eficácia do
que os outros. (CANETTI, 2010, p. 312).
Sendo
assim, Canetti define, o poeta seria:
Alguém que tem as palavras em alta consideração;
alguém que aprecia particularmente cerca-se delas, talvez até mais do que de
seres humanos; que se entrega a ambos,
mas com maior confiança às palavras; que as arranca de seus postos para, então,
tornar a assentá-las com desenvoltura ainda maior; que as interroga, apalpa,
acaricia, arranha, aplaina, pinta; que é mesmo capaz, depois de todas essas
intimidades impertinentes, de diante delas, temente, rastejar em busca de
refúgio. (CANETTI, 2010, p.313).
O poeta por conhecer intimamente
as palavras extrai delas o que ainda está latente: a linguagem retém o devir,
as catástrofes antes de eclodir se fermentam longamente na sintaxe cotidiana,
por isso, o poeta no sentido apresentado por Canetti teria o poder de vaticinar
e evitar a guerra, não porque tenha poderes excepcionais, mas porque superestima
corretamente as palavras. Indubitavelmente, tendemos a duvidar, assim como
Canetti o fez em um primeiro momento, da possibilidade de um poeta evitar a
guerra. Mas, arriscando interpretar essa hipótese, a fim de complementar o
raciocínio de Canetti, diríamos que o poeta evitaria a guerra não no sentido
deste, individualmente, conservar esse poder, pois sabemos que as engrenagens
políticas e econômicas que impulsionam um evento histórico extremo como esse
quase sempre renegam ao poeta um papel supérfluo.
Porém, o poeta poderia evitar a
guerra ao redirecionar a linguagem de uma posição ideológica a outra, não se
trata de um poder literal, e nem de um poeta específico, mas considerando que
uma guerra nasce na linguagem, caberia aos poetas perceberem as sutis evoluções
de ideias com potencial para o autoritarismo. Assim, se um poeta pudesse conter
a guerra, quando finalmente o fizesse, seus poderes estariam amplamente
infiltrados no imaginário, plenamente arraigados em uma mentalidade, que não
perceberíamos sua atuação. Com isso, talvez os grandes poetas do século XX
estejam agora evitando uma série de catástrofes, mas esta contenção acontece em
um nível profundo da linguagem, profundo o suficiente para não chegar à
consciência.
Assim o dichter, visto a princípio como uma figura jactante e alheada, que
durante os períodos complexos e catastróficos da humanidade era representado
como alguém afetado e indiferente; sob o ponto de vista de Elias Canetti recebe
um acento conceitual que se revela o oposto desta imagem estereotipada. Imagem esta que de tão divulgada fez com que
os verdadeiros poetas relutassem em se apresentar como tais. Porém, acima de
qualquer nomenclatura, estilo ou gênero, o que, de fato, segundo Canetti, o verdadeiro
poeta deveria ser era um “guardião das metamorfoses”. Afirmação aparentemente
ambígua que adquire sentido quando Canetti nos fala de Ulisses e
Gilgamesh. Ambos protagonistas de obras
com mais de mil anos, e que sofrem diversas metamorfoses até alcançar seus
objetivos. A metamorfose apresenta-se como marca da relativização constante, e
mesmo da humildade, pois a cada momento os heróis despem-se de si, e assumem o
lugar de outro, que muitas vezes estão em situação aparentemente inferior, ou
mesmo pertence à outra espécie. A metamorfose evita uma ascensão cega do eu ou
do progresso. Pois, ao renunciar a si mesmo o eu enfraquece suas certezas, que
tendem ao absoluto, e com isso, consegue refrear uma linearidade falsamente
evolutiva, que na busca de um ápice apaga os contrários e as vias opostas a
este. Diante disso, o dom da metamorfose:
...seria, creio, a verdadeira tarefa dos poetas.
Graças a um dom que foi universal e hoje está condenado à atrofia, e que
precisariam por todos os meios preservar para si, os poetas deveriam manter
abertas as vias de acesso entre os
homens. Deveriam ser capazes de se transformar em qualquer um, mesmo no mais ínfimo, no mais ingênuo, no mais
impotente. Seu desejo íntimo pela experiência de outros não poderiam jamais se
permitir ser determinado por aqueles que regem nossa vida normal, oficial, por
assim dizer: teria de ser absolutamente livre de toda pretensão de sucesso ou
prestigio, ser uma paixão por si, a paixão justamente pela metamorfose.
(CANETTI, 2010, pp.317-318).
A metamorfose, neste sentido,
preservaria as vias de acesso ao outro, o exercício constante de vivenciar, o
mais plenamente possível, a experiência de outro ser humano. Trata-se de negar
a si mesmo e de se multiplicar por diversos pontos de vista, seja pela empatia,
pela escuta, ou mais literalmente pela vontade de se colocar inteiramente no
lugar do outro. Assim, o ofício do poeta seria abdicar de seu sucesso,
assumindo as formas menos prestigiosas: Ulisses teve que voltar como mendigo, e
não raramente nos relatos antigos os heróis assumem formas de animais ou
insetos, retardando-se em inúmeros desvios. Pois, o sucesso, ou uma trajetória
linear, abstrai completamente tudo aquilo que não contribua para a meta final,
levando ao estreitamento ao descartar o múltiplo em nome de um objetivo
estrito. O poeta, deste modo, não pode recusar o que se apresenta como
distinto, mas acolhê-lo. Para tanto, deve alargar o máximo possível sua
subjetividade, para conservar, coexistindo, saberes e vozes discrepantes:
Uma vez que se abre para seres humanos os mais distintos
e os compreende da maneira mais antiga, pré-científica, ou seja, através da
metamorfose; uma vez que, com isso encontra-se interiormente em movimento
contínuo, que ele não pode enfraquecer e ao qual não pode pôr um fim – pois não
coleciona seres humanos, não os
coloca ordenadamente de lado, mas depara com eles e, vivos, os acolhe - ; e uma
vez que experimenta por meio deles choques intensos, é bem possível que a
súbita mudança em direção a um novo ramo do saber seja também determinada por
tais encontros. (CANETTI, 2010, p. 319).
Tantas vozes destoantes,
convivendo dentro de uma mesma subjetividade, inevitavelmente teria como
consequência o caos. Mas, para Canetti, o poeta deve se aproximar deste caos,
incorporá-lo. Porém, sempre com a esperança de dominá-lo. Pois, o mundo se
avoluma de contradições e conflitos, se encaminhando para a destruição. Tentar
conter, lutar com o caos, lhe fornecer uma voz, apreendê-lo de alguma forma,
deve ser uma das convicções do poeta, segundo a conotação mais complexa que
Canetti confere ao termo. A metamorfose é a estratégia mais eficaz neste
intento de conferir sentido ao caos. Isso porque, se quisermos nos aventurar em
uma interpretação, as pulsões destrutivas se vestem e se despem celeremente,
saber assumir diferentes formas, conseguir se revezar exaustivamente em
experiências diversas, poderia possibilitar uma compreensão mínima da dinâmica
do poder, ou do mal, em seu sentido político, e não espiritual.
O que não pode acontecer,
voltando a Canetti, é permitir que o caos nos conduza ao nada. O dichter tem que se responsabilizar “pela
vida que se destrói”. Sentir o fracasso de não ter evitado a guerra. A
compaixão, termo arriscado, juntamente com a metamorfose e o mito, seria a
maneira concreta do poeta se responsabilizar pela destruição da vida. Pois a
metamorfose possibilitou ao homem encontrar a compaixão, afinal, ela o levou a
vivenciar o sofrimento do outro, seja pelo mito ou pela literatura transmitida
desde sempre. O próprio Canetti cita-se como exemplo ao dizer que Gilgamesh lhe
possibilitou acessar um mundo que estava completamente perdido, um mundo que
por se originar da cultura oral foi negligenciado. Outro exemplo seria como o
mito de Édipo possibilitou a Freud capturar uma realidade complexa, que nos
ajudou a tolerar a nossa incompletude e a compreender como somos caóticos.
Podemos citar ainda, a maneira como Walter Benjamin apropriou-se de imagens do
período barroco e da oralidade, para criar conceitos que conseguem apreender as
contradições e os extremos do século XX, por exemplo. Com isso, exercer a
compaixão por meio da metamorfose e do mito, seria criar um caminho no caos. Os
conhecimentos pré-técnicos contidos no mito e na metamorfose conseguem irradiar
sentidos para áreas que a técnica, a especialização e estreitamento
intelectual, não alcançam.