quarta-feira, 17 de agosto de 2016


Um poeta pode evitar uma guerra




Elias Canetti
Elias Canetti (2010), defende a linguagem como instância capaz de mediar e evitar a catástrofe, e o faz por meio de uma escrita franca, sem o uso do vocabulário filosófico, no discurso “Ofício de poeta” que encerra o volume de ensaios A consciência das palavras. A reflexão de Canetti centra-se nesta frase: “Tudo, porém, já passou. Fosse eu realmente um poeta, teria necessariamente podido impedir a guerra”. A frase é datada do dia 23 de agosto de 1939, uma semana antes da guerra, escrita por um anônimo. Canetti conta que a frase o intrigou durante muito tempo, por lhe transmitir uma grande presunção, e pelo excesso de valorização da figura do poeta, já que lhe atribui um poder que aparentemente este não tem.
No entanto, investigando-a em amiúde Canetti percebeu que a frase, longe de indicar uma presunção, admite um fracasso, e seu autor assume uma responsabilidade ética pesada demais, que apontaria para uma solidariedade transbordante com o destino da humanidade. Esta atitude inesperada leva o escritor búlgaro a refletir sobre a condição e o papel do poeta em períodos sombrios. E em vez de reproduzir o pessimismo de costume que preconiza o fim da literatura e da poesia, Canetti, mostra-se crente no poder da palavra em sua instância estética. É verdade que, admite que a palavra poeta (dichter) tenha perdido bastante do seu prestígio, ao extremo de que aqueles que realmente merecem ser chamados de poetas recusam o título. Por isso, Canetti ao utilizar o termo poeta não se refere apenas aos que produzem poemas, mas aos que “escrevem” e insistem na escrita, e mesmo em face de diagnósticos funestos, continuam a escrever perseverantemente, apesar de inevitavelmente absorverem a amargura de seu tempo.
Assim, para Canetti o poeta é o escritor que acredita que a palavra conserva um poder insuspeitável, por isso, a afirmação do escritor anônimo de que um verdadeiro poeta poderia ter impedido a guerra, inicialmente irracional, passa a soar cada vez mais plausível para Canetti:
É justamente essa pretensão irracional à responsabilidade que me seduz e me põe a pensar. Dever-se-ia ainda acrescentar que foi por meio de palavras – consciente ou inconscientemente empregadas, pervertidas – que se chegou a uma tal situação que a guerra tornou-se inevitável. Ora, se as palavras tanto podem, por que não se haveria de poder impedir com elas a guerra? Não é absolutamente de se espantar que alguém que mais do que os outros lida com elas esperasse também mais de sua eficácia do que os outros. (CANETTI, 2010, p. 312).

Sendo assim, Canetti define, o poeta seria:
Alguém que tem as palavras em alta consideração; alguém que aprecia particularmente cerca-se delas, talvez até mais do que de seres humanos; que se entrega a ambos, mas com maior confiança às palavras; que as arranca de seus postos para, então, tornar a assentá-las com desenvoltura ainda maior; que as interroga, apalpa, acaricia, arranha, aplaina, pinta; que é mesmo capaz, depois de todas essas intimidades impertinentes, de diante delas, temente, rastejar em busca de refúgio. (CANETTI, 2010, p.313).  

    O poeta por conhecer intimamente as palavras extrai delas o que ainda está latente: a linguagem retém o devir, as catástrofes antes de eclodir se fermentam longamente na sintaxe cotidiana, por isso, o poeta no sentido apresentado por Canetti teria o poder de vaticinar e evitar a guerra, não porque tenha poderes excepcionais, mas porque superestima corretamente as palavras. Indubitavelmente, tendemos a duvidar, assim como Canetti o fez em um primeiro momento, da possibilidade de um poeta evitar a guerra. Mas, arriscando interpretar essa hipótese, a fim de complementar o raciocínio de Canetti, diríamos que o poeta evitaria a guerra não no sentido deste, individualmente, conservar esse poder, pois sabemos que as engrenagens políticas e econômicas que impulsionam um evento histórico extremo como esse quase sempre renegam ao poeta um papel supérfluo.
Porém, o poeta poderia evitar a guerra ao redirecionar a linguagem de uma posição ideológica a outra, não se trata de um poder literal, e nem de um poeta específico, mas considerando que uma guerra nasce na linguagem, caberia aos poetas perceberem as sutis evoluções de ideias com potencial para o autoritarismo. Assim, se um poeta pudesse conter a guerra, quando finalmente o fizesse, seus poderes estariam amplamente infiltrados no imaginário, plenamente arraigados em uma mentalidade, que não perceberíamos sua atuação. Com isso, talvez os grandes poetas do século XX estejam agora evitando uma série de catástrofes, mas esta contenção acontece em um nível profundo da linguagem, profundo o suficiente para não chegar à consciência.
Assim o dichter, visto a princípio como uma figura jactante e alheada, que durante os períodos complexos e catastróficos da humanidade era representado como alguém afetado e indiferente; sob o ponto de vista de Elias Canetti recebe um acento conceitual que se revela o oposto desta imagem estereotipada.  Imagem esta que de tão divulgada fez com que os verdadeiros poetas relutassem em se apresentar como tais. Porém, acima de qualquer nomenclatura, estilo ou gênero, o que, de fato, segundo Canetti, o verdadeiro poeta deveria ser era um “guardião das metamorfoses”. Afirmação aparentemente ambígua que adquire sentido quando Canetti nos fala de Ulisses e Gilgamesh.  Ambos protagonistas de obras com mais de mil anos, e que sofrem diversas metamorfoses até alcançar seus objetivos. A metamorfose apresenta-se como marca da relativização constante, e mesmo da humildade, pois a cada momento os heróis despem-se de si, e assumem o lugar de outro, que muitas vezes estão em situação aparentemente inferior, ou mesmo pertence à outra espécie. A metamorfose evita uma ascensão cega do eu ou do progresso. Pois, ao renunciar a si mesmo o eu enfraquece suas certezas, que tendem ao absoluto, e com isso, consegue refrear uma linearidade falsamente evolutiva, que na busca de um ápice apaga os contrários e as vias opostas a este. Diante disso, o dom da metamorfose:
...seria, creio, a verdadeira tarefa dos poetas. Graças a um dom que foi universal e hoje está condenado à atrofia, e que precisariam por todos os meios preservar para si, os poetas deveriam manter abertas as vias de acesso entre os homens. Deveriam ser capazes de se transformar em qualquer um, mesmo no mais ínfimo, no mais ingênuo, no mais impotente. Seu desejo íntimo pela experiência de outros não poderiam jamais se permitir ser determinado por aqueles que regem nossa vida normal, oficial, por assim dizer: teria de ser absolutamente livre de toda pretensão de sucesso ou prestigio, ser uma paixão por si, a paixão justamente pela metamorfose. (CANETTI, 2010, pp.317-318).

A metamorfose, neste sentido, preservaria as vias de acesso ao outro, o exercício constante de vivenciar, o mais plenamente possível, a experiência de outro ser humano. Trata-se de negar a si mesmo e de se multiplicar por diversos pontos de vista, seja pela empatia, pela escuta, ou mais literalmente pela vontade de se colocar inteiramente no lugar do outro. Assim, o ofício do poeta seria abdicar de seu sucesso, assumindo as formas menos prestigiosas: Ulisses teve que voltar como mendigo, e não raramente nos relatos antigos os heróis assumem formas de animais ou insetos, retardando-se em inúmeros desvios. Pois, o sucesso, ou uma trajetória linear, abstrai completamente tudo aquilo que não contribua para a meta final, levando ao estreitamento ao descartar o múltiplo em nome de um objetivo estrito. O poeta, deste modo, não pode recusar o que se apresenta como distinto, mas acolhê-lo. Para tanto, deve alargar o máximo possível sua subjetividade, para conservar, coexistindo, saberes e vozes discrepantes:
Uma vez que se abre para seres humanos os mais distintos e os compreende da maneira mais antiga, pré-científica, ou seja, através da metamorfose; uma vez que, com isso encontra-se interiormente em movimento contínuo, que ele não pode enfraquecer e ao qual não pode pôr um fim – pois não coleciona seres humanos, não os coloca ordenadamente de lado, mas depara com eles e, vivos, os acolhe - ; e uma vez que experimenta por meio deles choques intensos, é bem possível que a súbita mudança em direção a um novo ramo do saber seja também determinada por tais encontros. (CANETTI, 2010, p. 319).

Tantas vozes destoantes, convivendo dentro de uma mesma subjetividade, inevitavelmente teria como consequência o caos. Mas, para Canetti, o poeta deve se aproximar deste caos, incorporá-lo. Porém, sempre com a esperança de dominá-lo. Pois, o mundo se avoluma de contradições e conflitos, se encaminhando para a destruição. Tentar conter, lutar com o caos, lhe fornecer uma voz, apreendê-lo de alguma forma, deve ser uma das convicções do poeta, segundo a conotação mais complexa que Canetti confere ao termo. A metamorfose é a estratégia mais eficaz neste intento de conferir sentido ao caos. Isso porque, se quisermos nos aventurar em uma interpretação, as pulsões destrutivas se vestem e se despem celeremente, saber assumir diferentes formas, conseguir se revezar exaustivamente em experiências diversas, poderia possibilitar uma compreensão mínima da dinâmica do poder, ou do mal, em seu sentido político, e não espiritual.

O que não pode acontecer, voltando a Canetti, é permitir que o caos nos conduza ao nada. O dichter tem que se responsabilizar “pela vida que se destrói”. Sentir o fracasso de não ter evitado a guerra. A compaixão, termo arriscado, juntamente com a metamorfose e o mito, seria a maneira concreta do poeta se responsabilizar pela destruição da vida. Pois a metamorfose possibilitou ao homem encontrar a compaixão, afinal, ela o levou a vivenciar o sofrimento do outro, seja pelo mito ou pela literatura transmitida desde sempre. O próprio Canetti cita-se como exemplo ao dizer que Gilgamesh lhe possibilitou acessar um mundo que estava completamente perdido, um mundo que por se originar da cultura oral foi negligenciado. Outro exemplo seria como o mito de Édipo possibilitou a Freud capturar uma realidade complexa, que nos ajudou a tolerar a nossa incompletude e a compreender como somos caóticos. Podemos citar ainda, a maneira como Walter Benjamin apropriou-se de imagens do período barroco e da oralidade, para criar conceitos que conseguem apreender as contradições e os extremos do século XX, por exemplo. Com isso, exercer a compaixão por meio da metamorfose e do mito, seria criar um caminho no caos. Os conhecimentos pré-técnicos contidos no mito e na metamorfose conseguem irradiar sentidos para áreas que a técnica, a especialização e estreitamento intelectual, não alcançam.   

O VALE DA DESTRUIÇÃO

Eu andei no vale da morte e só encontrei destruição. A morte perdeu a piedade por nós e nos abandonou para apodrecermos em v...