sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A estética melancólica de W. G. Sebald



Dresden, German.


A estética tem sua origem, segundo Eagleton (1993), nos sentidos, no corpo. Porém, no século XVIII a razão tentou mapear a percepção deixando de lado a sensibilidade corporal. Isso distanciou a estética da vida material, o que talvez tenha criado o equívoco de que o estético deve recuar diante das coisas concretas e politicamente delicadas, ou mesmo de catástrofes em que o sofrimento real, fisicamente incontornável, tornaria a estética uma leviandade intelectual. Porém, dificilmente, poderíamos conceber a estética fora e distanciada do corpo, com todas as suas dores e miudezas sensórias. O conceito racional de estética nos fez acreditar que os sentimentos físicos são um subproduto da percepção. Mas um conceito que cresce negligenciando a origem mais imediata de todas as sensações, facilmente assume um aspecto negativamente ideológico, no sentido de inverter valores, e encobrir a realidade imediata, em vez de mostrá-la, algo bastante grave, segundo Terry Eagleton: “nada poderia ser mais incapacitante do que uma racionalidade dirigente incapaz de conhecer o que está além de seus próprios conceitos; impedida de inquirir sobre a matéria da paixão e da percepção” (EAGLETON, 1993, p. 17). A racionalidade reificada do Iluminismo recusava os sentidos, a vida em sua dimensão sensorial, porém, quando precisava se apropriar de algo pertencente a esse campo, mobilizava a estética, que servia como uma “subempregada cognitiva” da razão, que colhia e triava os elementos da matéria bruta da vida, e os entregava à razão, devidamente purificados e selecionados. Com isso, no século XVIII, a estética estava submetida a uma racionalidade esvaziada, que se distanciava de suas “raízes somáticas e perceptuais”, se ocupando apenas de objetos ideais, o belo. Isso produziu uma cegueira perceptiva, a razão se tornou inócua, culminando no seu oposto: obscurantismo e autoritarismo. 
Assim, a razão universal do período iluminista pairava acima da sensibilidade e do sujeito, e quando precisava se comunicar com estes, enviava a estética, que absorvia as demandas dos sentidos e da história. Recolhia partículas do mundo que deveriam ser plasticamente incorporadas à razão. Tudo isso, se desenvolvia sob um regime absolutista, em que o sujeito deveria ser submetido ao coletivo. Em um contexto burguês, a estética, juntamente com a sensibilidade individual, passa a ocupar uma posição mais central. Porém, a estética não adentra livremente, sem nenhuma intermediação ideológica, o campo dos sentidos. Pois, a subjetividade continua sendo monitorada, e a estética, neste novo contexto, teria a função de interligar subjetividades particulares em um todo harmônico, ou seja, nas relações sociais “encontra-se a estética, fonte de toda coesão humana. Se a sociedade burguesa abandona os sujeitos à sua autonomia solitária, então só através desta troca ou apropriação imaginativa das identidades uns dos outros, podem eles ser unidos profundamente” (EAGLETON, 1993, p.25). Os sentimentos, antes renegados pela razão, passam por meio da estética a garantir a unidade ideológica, pois a estética faz de uma conduta virtuosa individual um arquétipo para outros indivíduos, ao compartilhá-la incessantemente por diversos instrumentos de representação. Possibilitando, com isso, uma ordenação social mínima, ao produzir constantemente uma projeção empática entre os sujeitos.  
Antes existia uma força racional absolutista que garantia a unidade social. No contexto burguês, em que a ação individual é incentivada, a unidade teria que partir de ações individuais. Isso poderia facilmente produzir o caos. Logo se tem a necessidade de agrupar ações individuais em modelos que ordenem outros indivíduos. Para tanto, diversas representações estéticas distribuem no imaginário popular a figura do herói, que pela força da sua exemplaridade consegue manter a individualidade controlada. Isso porque o herói e a nação estão relacionados. As ações exemplares do herói coadunam vontades individuais em um propósito nacionalista. A estética, diante disso, teria a função de projetar sentimentos exemplares, com o intento de regular idelogicamente os sujeitos. Hegel em sua Estética defende essa conformidade de intenções entre a nação e o herói, alegando que as contradições morais do herói épico, por exemplo, são absolvidas pelo “princípio da necessidade”, com isso, mesmo as falhas éticas ou violentas do herói podem ser sintetizadas de maneira afirmativa se a finalidade dessas ações for preservar a unidade nacional: 
"[...] indivíduos totais que em si mesmos realizam uma sín­tese brilhante dos traços dispersos e dissociados do caráter nacional, o que faz deles caracteres essencialmente livres, humanamente belos, confere a esses nobres personagens o direito de figurar num plano superior e impõe-nos o dever de unir o principal acontecimento à sua individualidade" (HEGEL, 1993, p. 585 apud GINZBURG, 2010, p. 177).

Segundo Jaime Ginzburg (2010) essa concepção hegeliana de estética legitima a violência ao tentar harmonizar os interesses nacionalistas com a ação do herói épico, no qual suas ações ficam justificadas em nome da unidade da forma, ou mesmo da unidade da nação. Assim, o comportamento cruel do herói quando praticado em defesa do nacionalismo pode ser interpretado, segundo Hegel, como um exercício de soberania nacional. O estético em Hegel tenta harmonizar os sentimentos, as ações individuais, com a razão. Procurando sintetizar “o individualismo cego e o universalismo abstrato” em uma totalidade. Pois, conforme defende Eagleton, na sociedade burguesa a força unificadora não pode se apresentar como algo externo e imposto, mas se manifestar como uma vontade interna:
"Como a obra de arte definida pelo discurso da estética, o sujeito burguês é autônomo e autodeterminado, não reconhece nenhuma lei externa, mas, de algum modo misterioso, dá uma lei a si mesmo. Assim fazendo, a lei torna-se a forma que integra numa unidade harmônica o conteúdo turbulento de seus desejos e disposições. A compulsão do poder autocrático é substituída pela compulsão mais gratificante da autoidentidade do sujeito". (EAGLETON, 1993, p.24). 


 Ou seja, a sensibilidade, a subjetividade, os sentimentos, são atualizados por diversas representações estéticas, que os sujeitos reconhecem como representativas. Com isso, a liberdade para agir é sutilmente coordenada pela exemplaridade de modelos de subjetividade, que o indivíduo toma para si. Assim, a autodeterminação já é previamente determinada. Diante disso, a impressão que fica é que a estética obedece e serve, de modo incontornável, a uma ideológica dominante. De fato, a princípio, a estética não pode se colocar acima do contexto social e ideológica que a concebe. Mas, Theodor W. Adorno (2008) na tentativa de elaborar um conceito de estética que não seja completamente cúmplice com a barbárie que acompanha a cultura, defende que a estética deve carregar em si sua própria negação. Para isso a forma deveria assumir sua incompletude, pois a representação envolve sempre uma exclusão. Assim, passar a ilusão de harmonia e totalidade, como a estética hegeliana almejava, é contribuir para uma farsa. Pois a estética capta apenas uma parte da realidade, porém, se essa parte se expande a fim de compensar sua parcialidade, invariavelmente uma parte será ilusória. Já para Adorno, a forma tem que conservar o remorso da sua própria insuficiência, e por isso, confessar recorrentemente sua precariedade. Com isso, a estética deve colecionar fragmentos negativos, que quando combinados podem captar e revelar, parcialmente a realidade, mas nunca se fixando em uma forma harmônica, conforme esclarece Jaime Ginzburg ao comentar Adorno:
"A inclinação à fragmentação pode encaminhar a forma para um senso de inconclusão, configurado como má infinitude, em que a atribuição de sentido para a expe­riência pode ser sempre precária e incerta. É a melancolia da forma: os elementos podem se relacionar de múltiplas maneiras entre si e com o todo, mas não há uma definitiva maneira, nem uma última conclusiva". (GINZBURG, 2010, p. 186).
     
A forma deve possuir um elemento opaco que impeça a sensação de harmonia entre ela e o conteúdo: a realidade, a cultura.  Neste sentido, percebemos uma afinidade com Walter Benjamin, que semelhantemente vislumbrava uma representação, que pelo filtro da melancolia, recolhia fragmentos para com eles representar parcialmente a realidade, pois, o desvio é o único caminho possível para a verdade. A estética, inadvertidamente, pode criar uma distância. Um sistema completo de representação, coerente e coeso, pode inserir abstrações em demasia, falseando a realidade. Adorno propõe a suspensão desta distância por meio de uma atitude mimética radical, de fusão entre o eu e o objeto estético, suprimindo a distância, suspendendo o conceito. Igualmente, Benjamin, propõe um mergulho no teor coisal do objeto: “o sonho de Benjamin é o de uma forma de crítica tão tenazmente imanente que se manteria completamente imersa no seu objeto” (EAGLETON, 1993, p. 239). Ambos usam a melancolia como chave, porque a perda, a incompletude passa a incorporar a representação. 
A estética, neste sentido, teria um compromisso de assimilar os objetos, o outro, com toda a sua complexidade e estranheza, (algo semelhante ao conceito de metamorfose que discutimos no primeiro capítulo), exercitando a distância estética por meio da ética, pois, regular a distância significa não tentar idealizar ou mesmo adequar a realidade a um sistema representacional racional coeso, mas ao contrário, manter as contradições e diferenças intactas. Para tanto, busca-se apreender o objeto fora de seu involucro idealizado ou aplainado pela abstração racional. Por isso, imagens conceituais que privilegiam o contato direto com a parte mais imanente da realidade, são constantemente requisitadas, dentre elas está o melancólico, que se aprofunda plenamente na matéria das coisas, que coleciona os restos, os cacos, que inverte a lógica da autopreservação, se entregando ao que ninguém mais se interessa, e neste percurso acidental acaba por salvar fragmentos preciosos para nuançar uma parte não tão requisitada da verdade. 
Acreditamos que nos romances Os emigrantes e Austerlitz, W. G. Sebald consegue ilustrar concretamente as concepções estéticas de Adorno e Benjamin, criando uma espécie de estética melancólica, que a seguir tentaremos exemplificar, além de adensar a discussão sobre estética e melancolia.  

MELANCOLIA I: Austerlitz e Aurach no divã

O discurso que o rei Claudio faz a Hamlet para persuadi-lo a abandonar o luto e seguir em frente, e evidentemente cessar seus questionamentos em relação à morte do pai, mostra como precocemente Shakespeare diferenciou luto e melancolia, por mais que em âmbito ficcional e intuitivo: 
"Rei - Bela e recomendável atitude que enaltece teus sentimentos, Hamlet, rendendo a teu pai esse póstumo tributo; mas, deves saber que teu pai perdeu um pai; que este perdeu, também, o seu e que o sobrevivente está comprometido, por certo período, à obrigação filial de consagrar-lhe a dor correspondente; mas perseverar em obstinado luto é conduta de capricho ímpio; é pesar indigno do homem; mostra uma vontade desrespeitosa ao céu, um coração débil, uma alma sem resignação, uma inteligência pueril e inculta. Por que, pois, opor-se com estéril obstinação ao que sabemos tão comum quanto a coisa mais corriqueira? Lamentável! É um pecado contra o céu, uma ofensa aos mortos, um delito contra a natureza, o maior absurdo à razão, cujo tema comum é os pais morrerem antes dos filhos e que, desde o primeiro morto até aquele que hoje morre, não cessou de exclamar: “Assim deve ser!” Rogamos que jogues no chão essa dor inútil e considera-nos como se fôssemos teu pai". (SHAKESPEARE, 2005, pp. 21-22).   

Ou seja, o prolongamento do luto se mostra intolerável porque o enlutado não retoma seu interesse pela vida, não volta às celebrações da vida, pois sua atenção está com os mortos. No caso de Hamlet seu luto não cessa, ultrapassando a normalidade, e quando isso acontece já estamos no campo da melancolia.  Obviamente o luto de Hamlet não tem como permanecer na normalidade devido às condições de sua perda manter uma ambiguidade que refuta a explicação aparentemente plausível do Rei usurpador, assim a melancolia seria este luto que não é vencido pela realidade, pelas explicações racionais. Alguns séculos depois luto e melancolia seriam sistematizados pela psicanálise, conservando o juízo positivo ao luto normal, e já tratando a melancolia como patologia. Assim, o luto, como diz Freud (2010), é salutar e necessário para que os tentáculos da libido se recolham, e aos poucos, tateiem em direção a um novo objeto libidinal. Movimento este que não se faz sem dor e sofrimento, visíveis pela apatia em relação ao mundo. Mas por mais difícil que seja aceitar essa travessia pela dor, o percurso não deve ser encurtado, pois o luto desde que proporcional à perda é um trabalho essencial para que a ausência do abjeto amoroso possa ser assimilada. Em comparação com a melancolia o luto compartilha vários sintomas em comum:
"A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição. Esse quadro se torna mais compreensível para nós se consideramos que o luto exibe os mesmos traços, com exceção de um: nele a autoestima não é afetada. De resto é o mesmo quadro". (FREUD, 2010, pp. 172-173).   

A única razão para que o luto não seja também considerado uma patologia é porque ele pode ser explicado, seu motivo é externo e definido para quem passa por ele, e com o tempo essa compreensão o permite se integrar novamente à vida. A autoestima se mantém porque o eu visualiza fora dele o objeto perdido, sua condição de alguém que foi injustiçado pelo acaso lhe conserva na posição privilegiada de vítima de uma força maior. Além disso, o trabalho do luto atende a uma programação: a constatação da perda obriga o sujeito abandonar uma posição libidinal, ele resiste e prolonga por algum tempo essa ligação por meio da fantasia, da alucinação, até que a realidade gradualmente substitua o fantasma do objeto de luto, devolvendo novamente o sujeito para uma posição libidinal. No caso da melancolia essa ligação com objeto perdido não se desloca para outro porque não se sabe o que realmente se perdeu; então a programação do luto não se completa.
Freud ressalta ainda que há casos em que o melancólico sabe quem perdeu, mas não o que deste foi perdido. Ou seja, a perda permanece em um território inconsciente: “isso nos inclinaria a relacionar a melancolia, de algum modo, a uma perda de objeto subtraída à consciência; diferentemente do luto, em que nada é inconsciente na perda.” (FREUD, 2010, p. 175). Mas o mais intrigante na melancolia é o rápido desgaste e empobrecimento do eu. O melancólico ataca constantemente a si mesmo, a perda de amor próprio leva-o a se considerar impróprio para o amor. Freud defende que mesmo que aparentemente essa autocrítica impiedosa se mostre injusta, o melancólico não deve ser desmentido, pois em algum momento essa autodepreciação alcançará o verdadeiro alvo. Pois ocorre um desdobramento do eu. E uma parte do eu, armada de uma exigente consciência moral, ataca a outra. Assim, o autoenvilecimento é discrepante na maioria das vezes, ou senão incompatível com a visão que se tem desta pessoa, mas para Freud essa discrepância logo se justifica:
"A discrepância mencionada pode ser esclarecida por meio de uma observação que não é difícil de fazer. Ouvindo com paciência as várias autoacusações de um melancólico, não conseguimos, afinal, evitar a impressão de que frequentemente as mais fortes entre elas não se adéquam muito a sua próprio pessoa, e sim, com pequenas modificações, a uma outra, que o doente ama, amou ou devia amar".(FREUD, 2010, p. 179).
  
O melancólico incorpora inconscientemente o objeto da perda, e ataca a si mesmo a fim de atingir a fonte de sofrimento recalcada: como se tivesse sido ferido por uma mão invisível que lhe golpeia por dentro. Um golpe não mortal, que abre uma brecha no corpo para que a morte entre em gota a gota, não a morte biológica, pois esta naturalmente entra no corpo, gradativamente desde o nascimento. Mas a morte da consciência. O melancólico precisa saber o nome de quem ou o que lhe atingiu, mas esta informação está sob sua consciência, então este começa a destruí-la para alcançar a informação omitida. O problema do melancólico é que este usa o próprio corpo como munição contra um inimigo impalpável, como alguém tentando ferir a própria sombra; isso ocorre porque a energia retirada do objeto da perda não é transferida para um novo, mas recolhida para o interior do eu, “mas lá ela não encontrou uma utilização qualquer: serviu para estabelecer uma identificação do eu com o objeto abandonado” (FREUD, 2010, p. 181). Desta forma, Freud destaca, o eu crítico se volta contra o eu “modificado pela identificação”. Ao fim, o objeto perdido pode ser rastreado no inconsciente usando como pistas as autoacusações, que em parte descreve e acusa objeto libidinal, para assim explicá-lo. Mas há situações em que a melancolia simplesmente cessa.  Isso talvez aconteça devido ao eu crítico superar ou desistir do objeto amoroso identificado à outra parte do eu, um desligamento análogo ao luto, que se faz gradualmente, com a diferença que esse se passa em um nível ambivalente. Pode ocorrer também uma alternância entre um estado de depressão e outro de mania. Freud conjectura algumas possibilidades para essa alternância. Uma delas é que a mania seja uma descompressão, um relaxamento que se sobrepõe a um estado de crispação. Freud aventa para este estado de mania a hipótese que ao término do investimento destrutivo, o eu reaja com contra investimentos, a fim de regenerar rapidamente a imensa ferida aberta. Mas poderíamos complementar dizendo que a própria ambivalência do objeto põe em concorrência forças que procuram destruí-lo no interior do eu, com forças que tentam reestabelecer um laço libidinal com este mesmo objeto.  
Hoje a melancolia é tratada como um caso de saúde pública, devidamente diagnosticada e combatida com drogas específicas. Mas antes de ser oficialmente uma patologia, ela fez um percurso simbólico, desencadeando imagens e representações diversas no imaginário coletivo. O conjunto dessas imagens e representações forma uma estética. Na literatura há representações clássicas de indivíduos melancólicos, o mais conhecido dele talvez seja o já citado Hamlet. E existem ao menos duas grandes estilísticas orientadas por ela: o romantismo e o barroco. Aparentemente a melancolia é identificada a uma atitude reacionária, pela imobilidade de seus agentes, e pelo seu negativismo que poderia bloquear de antemão uma atitude proativa. Mas as duas estilísticas em questão já serviram de base para conceitos que despertaram um grande fluxo crítico ao pensamento iluminista-racional, que durante muito tempo se manteve hegemônico. O barroco serviu para Walter Benjamin desenvolver, em Origem do drama trágico alemão, seu conceito de alegoria, dentre outros, que incentivam a atacar tanto a epistemologia iluminista, ao criticar o símbolo, quanto o conceito positivo e progressivo de história, ao revelar que esta é um acúmulo de ruínas e de cadáveres, que não serão redimidos em um fim transcendente. Assim, resta apenas voltar à imanência, e nela medir corporeamente o tempo e a história. O romantismo, por sua vez, também foi reavaliado sob um ponto de vista revolucionário, por Michel Löwy e Robert Sayre, em Revolta e Melancolia, ao definirem o romântico como uma vítima da modernidade, que se torna em seguida seu principal opositor, por ver nela o fim de todos os valores que poderiam concretizar seu mundo ideal, buscando assim refúgio em um aquém dela, no passado, ou em um além, projeção para um futuro fantasioso. Enfim, os dois exemplos mostram como a melancolia pode ser utilizada como uma constante fonte de questionamento. Isso é compreensível se lembrarmos de que Freud afirma que o melancólico costuma estender seu forte juízo crítico, sobre si mesmo, para tudo que o cerca. Com isso, ao combater seu eu, exagerando defeitos e ignorando suas qualidades, desenvolve uma intolerância moral com ele e com o mundo. 
Na teoria da melancolia o caráter positivo e negativo em torno da melancolia se alterna com as mentalidades.  Durante a Idade Média, por exemplo, era descrita assim:
"A melancolia, ou bílis negra, é aquela cuja desordem pode provocar as consequências mais nefastas. Na cosmologia humoral medieval, aparece associada tradicionalmente à terra, ao outono (ou ao inverno), ao elemento seco, ao frio, à tramontana, à cor preta, à velhice (ou à maturidade), e o seu planeta é Saturno, entre cujos filhos o melancólico encontra lugar ao lado do enforcado, do coxo, do camponês, do jogador de azar, do religioso e do porqueiro. A síndrome fisiológica da abbundantia melancholia inclui o enegrecimento da pele, do sangue e da urina, o enrijecimento do pulso, a ardência do estômago, a flatulência, o arroto ácido, o zumbido na orelha esquerda, a prisão de ventre ou excesso de fezes, os sonhos macabros e, entre as enfermidades que podem provocar, figuram a histeria, a demência, a epilepsia, a lepra, as hemorroidas, as sarnas e mania suicida. Consequentemente, o temperamento que deriva da sua prevalência no corpo humano é apresentado sob uma luz sinistra: o melancólico é pexime complexionatus, triste, invejoso, mau, ávido, fraudulento, temeroso e terroso". (AGAMBEN, 2008, pp.33-34).

Mas a melancolia tem uma habilidade dialética de se projetar de sua negatividade aparente para uma postura positiva. Assim, se o melancólico acumula uma série de características condenáveis, este também é associado, desde Aristóteles, à sabedoria, à poesia, e ao dom profético. Walter Benjamin sugere que esta dualidade resulte das ambiguidades das imagens que costumam representar a melancolia. E cita a própria dualidade da imagem de saturno: “tal como a melancolia, também Saturno, esse demônio dos contrastes, investe a alma, por um lado com a indolência e apatia, por outro com a força da inteligência e da contemplação” e ainda “como ela, também ele ameaça os que lhe estão sujeitos, por mais distintos que sejam esses espíritos, com os perigos da hipocondria ou da demência extática” (BENJAMIN, 2011, p. 156). O mesmo ocorre com outro representante da melancolia, o cão, que tem seu organismo movido pelo baço e “este órgão, particularmente delicado, se altera, o cão perde a alegria e fica raivoso. Deste ponto de vista, o cão simboliza o aspecto sombrio da complexão melancólica”, mas por outro lado “o faro e a resistência do animal permitiram construir dele a imagem do incansável pesquisador e do pensador meditativo” (BENJAMIN, 2011, p. 159). Assim, o melancólico tem suas qualidades retiradas de suas deficiências. Isso fica claro quando vemos que um dos dons atribuídos ao saturnino, o dom da profecia, sua capacidade visionária, resulta não de uma ligação sublime com o céu, mas de seu olhar fixado na terra, de sua limitação imanente. Dessa forma, a melancolia fornece dons que são acompanhadas de uma maldição, as vitórias são alcançadas depois de intensas derrotas, e na maioria das vezes são os fracassos do melancólico que ressalta sua excepcionalidade em relação ao seu tempo.  
Esse é o caso das figuras melancólicas presentes nas obras de W. G. Sebald. De fato, os personagens de Sebald são indivíduos envoltos em uma tristeza permanente, que tem sua causa encoberta em algum ponto em que a história do século XX atingiu um ápice catastrófico, e que juntamente com o recalque histórico que se seguiu logo depois, se subtraiu uma parte do passado deles, ou mesmo um objeto amoroso (mãe, pai, amantes, pátria, amigos), e com isso o destino das figuras melancólicas é metonimicamente o do século XX, ou como diria Coetzee:
"Nos livros de Sebald, as pessoas são na maioria o que só podemos chamar de melancólicas. O tom de suas vidas é definido por uma sensação difícil de articular de que não fazem parte do mundo, e de que os seres humanos em geral talvez não devessem estar aqui. São modestos o suficiente para não reivindicarem uma sensibilidade sobrenatural às correntes da história – na verdade tendem a crer que é neles que alguma coisa está errada - , mas o teor do empreendimento de Sebald é sugerir que suas pessoas são proféticas, muito embora no mundo moderno o destino do profeta seja permanecer obscuro, sem que ninguém lhe dê ouvidos". (COETZEE, 2011, p. 181).

Em seguida o diagnóstico que os enquadra perfeitamente na condição de melancólicos: 
"Qual será a base de tanta melancolia? Sebald sugere e torna a sugerir que são todos prejudicados pelo peso da história recente da Europa, uma história em que assoma gigantesco o Holocausto. Internamente, sentem-se dilacerados pelo conflito entre o impulso autoprotetor de manter bloqueado um passado sofrido e um avanço às cegas em busca de alguma coisa, não sabem bem o quê, que se perdeu". (COETZEE, 2011, p. 181). 

Realmente os personagens na obra de Sebald conservam uma inextricável relação com a história no que tange a uma parte importante de suas identidades, como se ao levar em conta que o indivíduo é uma narrativa, os indivíduos sebaldianos fossem narrativas desprovidas de um começo, e que este começo foi cortado no momento em que editaram a história. E mais: suas memórias foram penhoradas para custear o progresso, para patrocinar a superação surpreendente, porém precoce, de suas nações.  O interessante neste caso é que as pessoas nas narrativas de Sebald sofrem de uma melancolia que, como já vimos tem como principal sintoma a perda de um objeto indefinido, sabemos posteriormente que esse objeto foi retirado por uma interferência traumática da história, mas a própria história também sofre de melancolia e seu objeto perdido são exatamente os indivíduos que protagonizam as narrativas sebaldianas, e o cenário em ruínas que os cerca. 
Assim, levá-los da melancolia ao luto, ajudá-los a localizar no inconsciente as memórias interditadas, encontrar seus mortos, é ajudar, por conseguinte, a História a trazer para a consciência, para a narrativa oficial os sobreviventes que ela também interditou. E o modo como Sebald faz isso se assemelha ao método psicanalítico: a cura pela fala, ou melhor, pelo narrar. E isso é estimulado pelo ouvir paciente do narrador. No começo todos resistem em falar, pois estão envolvidos pela apatia da melancolia. São necessárias varias sessões que se distribuem ao longo de décadas. Talvez as sessões mais demoradas e que mais exigiram tempo de Sebald sejam os casos de Austerlitz e Aurach.
Austerlitz é o que nutre uma relação mais estreita com a história. Por ser ele mesmo um historiador. E digamos que esse siga o preceito benjaminiano do que seria o historiador ideal. Pois este tenta de certa forma contar a história pelo viés literalmente material, tal como recomenda Benjamin, ele mergulha no teor coisal. Mas nem todos conseguem fazer esse mergulho, apenas aquele que carrega a marca da melancolia. Isso porque, como Benjamin (2011) defende em Origem do drama trágico alemão, os melancólicos, devido ao medo da traição e da infidelidade humana, passa a ser cada vez mais fiel às coisas:
"À sua infidelidade aos seres humanos corresponde uma fidelidade às coisas, que verdadeiramente o mergulha numa entrega contemplativa. O lugar da concretização adequada do conceito que espelha este comportamento só pode ser o dessa fidelidade desesperançada ao mundo criatural e à lei da culpa que governa a sua vida. Todas as decisões essenciais na relação com os homens podem ofender os princípios da fidelidade, elas regem-se por leis superiores. Essa fidelidade só está perfeitamente adequada à relação dos homens com o mundo das coisas. Este apela constantemente para ela, e toda a promessa e toda a memória em nome da fidelidade rodeia-se de fragmentos do mundo das coisas como se fossem os seus próprios, como objetos cujas exigências nunca são excessivas. De forma desajeitada, e mesmo injustiçada, ela proclama a seu modo uma verdade por amor da qual, de fato, trai o mundo. A melancolia trai o mundo para servir o saber. Mas o seu persistente alheamento meditativo absorve na contemplação as coisas mortas, para as poder salvar". (BENJAMIN, 2011, p. 164).  
  
De fato, o melancólico tem uma capacidade excêntrica de colecionar ou simplesmente acumular objetos em torno de si. Algo que Freud explica: “deriva do erotismo anal arrancado de seus vínculos e transformado regressivamente” (FREUD, 2011, p. 185). A posse compensa uma perda ou uma traição, o medo de perder, ou de empobrecer, do príncipe barroco vem por saber que seu trono lhe está constantemente ameaçado, e até mesmo o seu poder resultou em algum momento de uma traição, por isso se agarra aos objetos que o legitimem em seu poder: a coroa, o cetro, o trono, dentre outras coisas. Para Benjamin esse acumular cria um saber porque a história só pode ser apreendida em minúcias, pelas coisas retidas no presente, já que acreditava no valor testemunhal das coisas. Para ele os objetos mais insignificantes podem acumular o que existiu de singular de uma época. Pois, o que nos parece mais inútil hoje é porque foi fruto de uma forma de viver já extinta: seu aspecto prescindível ao presente só confirma o fato de que ele só poderia pertencer à época que gerou demanda para sua existência.  O motivo de Benjamin acreditar neste poder das coisas de reter significados históricos singulares deve-se a maneira como reinterpretou o conceito de infraestrutura e superestrutura de Marx. Tal como destaca Hanna Arendt em seu texto sobre Walter Benjamin: “o aspecto teórica que acabaria por fasciná-lo era a doutrina da superestrutura”, porém “o que aí o fascinava era que o espírito e sua manifestação material estavam tão intimamente ligados que parecia possível descobrir, em todas as partes, as correspondances de Baudelaire” e “se fossem adequadamente correlacionadas, se esclareceriam e se iluminariam uma às outras de modo que, ao final, não mais precisariam de nenhum comentário interpretativo ou explicativo”. (ARENDT, 2008, p.176).  Essa forma direta se associa ao acontecimento no campo “do espírito” a um fator material, sem intermediários interpretativos, que provocou a acusação por parte de Adorno a Walter Benjamin de não ser suficientemente dialético em seu artigo sobre Baudelaire. Mas não ser dialético era exatamente o que Benjamin pretendia: “tentativa de capturar o retrato da história nas representações mais insignificantes da realidade, por assim dizer em suas raspas”. (Apud ARENDT, p. 176).  Benjamin acreditava que a recolagem das “raspas”, dos cacos da História, sem mediações explicativas, ou causais, tem a ver com a intervenção alegórica de liberar os objetos históricos do continuum da história a que tradição os relegou, ou mesmo de “re-significá-los”.
Austerlitz, tal como Benjamin e o príncipe melancólico barroco, mostra uma grande capacidade de retenção material: “seu escritório atulhado, que parecia um depósito de livros e papéis e no qual mal havia espaço para ele próprio, que dirá para os alunos, em meio às pilhas amontoadas no chão e nas prateleiras” (SEBALD, 2008, p. 36). Além disso, Austerlitz possui uma teoria que se aproxima da mesma que Benjamin defende em seu projeto mais audacioso, As passagens:
"Lembro-me até hoje da facilidade com que eu assimilava o que ele chamava de suas ideias experimentais, quando discorre sobre o estilo arquitetônico da era capitalista, um assunto do qual se ocupava desde a época da faculdade, e em particular sobre a mania de ordem e a tendência à monumentalidade que se manifestavam em cortes de justiça e instituições penais, em estações de trem e prédios da Bolsa, em teatros líricos e hospícios, e ainda nas moradias para o operariado construídas segundo padrões ortogonais. Suas pesquisas, disse-me Austerlitz certa vez, há tempos haviam superado seu propósito original como projeto de tese de doutorado e derramaram-se, em suas mãos, numa infinidade de trabalhos preliminares a um estudo, inteiramente baseado em suas próprias opiniões, sobre a afinidade existente entre todos esses edifícios. O motivo pelo qual se aventurava em campo tão vasto, disse Austerlitz, ele não sabia. Provavelmente fora mal aconselhado quando iniciou os primeiros trabalhos de pesquisa. Mas a verdade era também que até hoje ele obedecia a um impulso que ele próprio não compreendia, que estava ligado de algum modo ao fascínio precoce pela ideia de uma estrutura em rede, como, por exemplo, todo o sistema ferroviário. Já no início dos estudos, disse Austelitz, e mais tarde, durante sua primeira temporada em Paris, ele costumava visitar quase que diariamente uma das grandes estações, em geral a Gare du Nord e a Gare de L’Est, sobretudo de manhã ou à noite, para observar as locomotivos a vapor que ingressavam no pátio de vidro negro de fuligem ou o suave deslizar dos misteriosos vagões-leitos, esplendidamente iluminados, que rumavam noite adentro como navios na imensidão do mar. Não raro ele ficara à mercê das mais perigosas e para ele totalmente incompreensíveis correntes de emoção nas estações parisienses, que ele, como dizia, considerava lugares a um só tempo de felicidade e infelicidade". (SEBALD, 2008, pp. 37-38).

Como vemos a mesma melancolia do recalque é a mesma que orienta para o lembrar. Seu impulso inconsciente de reter mais do que precisa, de trair o mundo pelo fascínio às coisas, vai dialeticamente o aproximando de sua parte perdida, de sua origem. Assim, a tese de interligação, de que tudo se corresponde, permite o objeto imanente, a estrutura arquitetônica, reter vestígios de um mundo anímico e emocional, sua obsessão pelos objetos, pelas estações ferroviárias, provoca seu embarque no trem fantasma, que ronda insistentemente a consciência fechada, até encontrar uma abertura para sua volta. Assim, sabemos depois que Austerlitz foi enviado ainda criança em um trem para fora do extermínio. E que por uma daquelas estações passou seu pai, já cativo: “e no silêncio incomum que... reinava na Gare d’ Austerlitz” disse Austerlitz “ocorrera-lhe a ideia de que o pai deixara Paris por aquela estação, vizinha do seu apartamento na rue Barrault, logo após os alemães entrarem na cidade” (SEBALD, 2008, p. 279). E examinando a estação, especificamente um pátio abandonado, mal iluminado e com andaimes parecidos com patíbulo, além de ganchos e ferro enferrujados que deveria servir para guardar bicicleta, mas que em vez disso 
"quando no domingo pus os pés pela primeira vez nesse estrado em uma tarde de domingo no meio do período de férias, não se via ali nenhuma bicicleta, e provavelmente por isso, ou por causa das penas de pomba espalhadas por todo o soalho de tábuas, fui assaltado pela impressão de que me encontrava na cena de um crime não expiado". (SEBALD, 2008, p. 281).
Impressão de nenhuma forma implausível, pois como diz Benjamin (1994): “qualquer pista seguida pelo flâneur vai conduzi-lo a um crime” (p.39). O flâneur, caminhante que se fascina com detalhes desprezados pela turba, deambula a esmo, atrás de algo que ainda não sabe bem, é uma das modalidades de melancólicos. Austerlitz é um flâneur. E sua investigação das camadas arquitetônicas da cidade lhe faz caminhar pelas camadas de tempos, retidas no concreto e nos ferros, ao local em que perdeu tudo aquilo que serve para fixar, mesmo que ideologicamente, uma identidade: um nome, um pai e uma mãe, um país. 
No caso de Aurach o enfrentamento com o indizível se dá mais frontalmente, talvez por ser um artista, encarna diretamente o dilema de representar o que está desprovido de qualquer materialidade simbólica. Mas o processo difícil de falar para compreender, ou mesmo para se permitir o luto, se passa de maneira semelhante ao de Austerlitz. De fato, há aquela resistência ao dizer que o tranca no silêncio e no isolamento, neste caso também o sintoma da melancolia é adiantado na forma: a residência do artista em uma rua abandonada, em um subúrbio em ruínas, além de seu ateliê como igualmente seu método materializam a luta travada no inconsciente do melancólico. 
O ateliê: 
"A escuridão acumulada nos cantos, o reboco de cal inchado com manchas de sal, e a pintura descascando nas paredes, as prateleiras cobertas de livros e montes de jornais, as caixas, bancos de oficina e mesinhas, a bergére, o fogão a gás, o colchão, as desordenadas montanhas de papel, louça e material, os potes de tinta vermelha, verde-folha e brancos brilhando na sombra, as chamas azuladas dos dois fornos de parafina, todo o mobiliário move-se milímetro a milímetro em direção daquele centro onde Aurach instalou seu cavalete, na claridade cinzenta que entra pela alta janela do norte, coberta por décadas de poeira. Como aplica grandes quantidades de tinta e sempre a raspa de novo da tela no curso de seu trabalho, o chão está coberto por uma massa de vários centímetros de altura já endurecida, com uma crosta, misturada com pó de carvão e achatada nas beiras, parecendo um rio de lava, que Aurach diz ser o verdadeiro resultado de seus permanentes esforços e a mais evidente prova de seu fracasso". (SEBALD, 2002, p. 160).
Acumular coisas é a marca mais visível do melancólico. Pois sua relação com mundo se dá pelos objetos. Neste caso Aurach adianta materialmente sua personalidade no espaço em que vive. As coisas desordenadas, o pó sedimentado, ajudam a compor seu “eu”, e são formas de reter significados do mundo, pois o melancólico representa o mundo como empilhamento de coisas, e transmitem sentidos sempre por meio de “ideias espacializadas”, e como já se disse: sua fidelidade às coisas salva a história. Isso porque as “transações entre o melancólico e o mundo sempre se dão com coisas” tal como os barrocos e surrealistas, que ao colecionarem objetos sem utilidade prática, criava uma nova paisagem material que adiantava pela liberação de energias destrutivas e mórbidas, o que mundo fabricava secretamente em seu interior. Disso a visão aguçada para decifrar ou pressagiar do melancólico. Só que aqui o presságio seria ao contrário: prevê aquilo que já aconteceu, mas que permanece indecifrável.
O método:  
"Na verdade muitas vezes, vendo Aurach trabalhar em um de seus estudos de retratos semanas a fio, pensei que ele desejava a multiplicação do pó. Seu jeito de desenhar intenso e devotado, quando em pouco tempo gastava meia dúzia de bastõezinhos de madeira de salgueiro queimada, esse desenhar e repassar no papel grosso parecendo couro, bem como o constante apagar do desenhado com um pano de lã já empapado daquele carvão, era na realidade uma produção de pó que só se interrompia à noite. Eu sempre me espantava de ver como pelo fim de um dia de trabalho Aurach montara, com as poucas linhas e sombras que tinham escapado da aniquilação, um retrato de grande vividez. E mais me espantava quando na manhã seguinte, assim que o modelo tomara seu lugar e ele lhe lançara um primeiro olhar, esse retrato era infalivelmente apagado, para escavar mais uma vez, daquele fundo já bastante prejudicado pelas constantes destruições, os traços e olhos incompreensíveis como ele dizia de seu oponente, muitas vezes afetado no processo de trabalho". (SEBALD, 2002, p. 161). 

Benjamin diz que o melancólico é indeciso, exatamente por ver todas as possibilidades se desenrolando simultaneamente. Assim, a criação se torna um torturante processo de decifração. Aurach não se decide por fixar um rosto, a repetição e a meticulosidade recusa qualquer produto final, para ele sua obra de arte é o pó. Nada menos barroco. A poeira é um dos símbolos da melancolia, assim como a terra. O peso e a lentidão também. Aurach compulsivamente tenta arrancar uma imagem encoberta, seus retratos são uma tentativa fracassada de apreender “rostos ancestrais”, olhares soterrados pelo tempo; seus quadros são palimpsestos deliberados, que tentam desfazer o palimpsesto que é a memória recalcada. O método de trabalho de Aurach reproduz a repetição compulsiva da memória tentando se expressar, ou como “afirmou Freud – na linha de Nietzsche: ‘ o que permaneceu incompreendido retorna; como uma alma penada, não tem repouso até encontrar resolução e libertação’” (apud SELIGMAN-SILVA, 2005, p. 73).  E essa repetição infinita da cena traumática é que gera a vítima consciente da sua própria dor, que segundo Aurach são as piores vítimas: 
"O horror do sofrimento que, partindo das figuras apresentadas, impregna toda a natureza para emanar de volta das paisagens apagadas sobre as figuras humanas dos mortos, agora se agitava em mim, subindo descendo como as ondas do mar. E paulatinamente, olhando os corpos feridos, os corpos das testemunhas da execução curvados pelo sofrimento como juncos, compreendi que em determinado momento a dor anula sua condição de existir que é a consciência, e com isso talvez – sabemos muito pouco a respeito – anula a si mesma. Em contrapartida, a dor da alma é praticamente infinita. Quando se acredita ter chegado à última fronteira, há sempre novos tormentos. A gente cai de abismo em abismo". (SEBALD, 2002, p.170) 

   Assim quando os mortos e os vivos se confundem, quando o sofrimento impregna toda a natureza, sem deixar descanso aos olhos dos sobreviventes, temos o auge do sofrimento de um genocídio. Tendemos a contabilizar as tragédias em números, mas há os mortos que não entram na conta, ou melhor, entram como um saldo positivo, pois a sobrevivência costuma ser vista como algo heroico. Existe um efeito de irradiação que continua a mutilar secretamente aqueles que foram feridos pelo testemunho, ou pela perda, estes herdam a dor dos seus mortos, e esta vem com o invólucro do absurdo e por isso não pode ser absorvida pela compreensão, então temos a “compulsão de repetição” no dizer psicanalítico, ou o cair de abismo em abismo a qual se refere Aurach. Sebald se referiu a isso como a masturbação sem gozo, um ato vazio que cancela a tranquilidade, pois até a imagem mais terna, quando repetida de maneira ilógica e infindavelmente, se tornaria incômoda, por isso, talvez, o suicídio seja praticamente inevitável.  

MELANCOLIA II: a estética e o método melancólico.

Depois que conhecemos um pouco de como a melancolia age no campo individual, e também que sua cura ocorre quando o objeto da perda é redirecionado para a consciência, para que haja finalmente o trabalho de luto, tentemos imaginar a melancolia afetando a consciência coletiva de um país, e se neste caso, a cura ocorre pela fala e pela tentativa de compreensão, quem falaria em nome da história enferma? E como o objeto da perda seria representado e devolvido à consciência coletiva?  Uma das respostas para estas questões seria, segundo W. G. Sebald, a literatura.  Algo que vemos defendido e ilustrado em Guerra aérea e Literatura (2011). Ensaio no qual W. G. Sebald se ressente do silêncio que se seguiu após a pulverização das cidades alemãs pelos ataques aéreos dos aliados, que engolfou as cidades em um imenso incêndio que constantemente aparece, na forma de uma imagem abrupta, na ficção de Sebald. A prodigiosa recuperação das cidades bombardeadas poderia até certo ponto ser admirável, se não tivesse resultado de um imposto mecanismo de recalque, praticado de forma sistemática, e ao custo da supressão do luto aos mortos emparedados e varridos junto com os escombros. 
Assim, a energia e a determinação alemã para reconstruir as cidades ainda maiores e mais sólidas tiveram como catalisador “uma fonte puramente imaterial: a corrente de energia psíquica até hoje não exaurida, cuja fonte é o segredo guardado por todos sobre os cadáveres amuralhados nos alicerces de nossa entidade estatal” (SEBALD, 2011, p. 21). E esse acordo tácito de silêncio cria um quadro psíquico melancólico, que pode ter entre suas principais consequências o retorno sintomático dos fantasmas dos mortos que não foram devidamente enlutados. Aliás, Sebald parece sugerir expressamente isso: a vivência do luto, a exposição dos mortos, a tristeza e apatia dolorosa, são salutares à consciência coletiva. 
Mas para Sebald o mais intrigante é ver esse silêncio e essa autoanestesia alemã alcançarem a literatura. Pois esta tem um papel essencial para distribuir na consciência coletiva as imagens subtraídas pela ideologia da superação heroica. Afinal, são raríssimas as obras que se referem ao tema, e entre as que tratam quase sempre pertencem a autores estrangeiros, ou alemães há bastante tempo exilados, e assim a recusa de ver e testemunhar dos alemães “não foi compensado pela literatura do pós-guerra” reforçando o tabu sobre o tema. E até as exceções, como Heinrich Böll, mostram-se “previamente sintonizado com a amnésia individual e coletiva, e guiado, talvez, por processo pré-conscientes de autocensura para o encobrimento de um mundo que se tornara incompreensível” (SEBALD, 2011, p. 19). Assim, a destruição material e moral nunca foram completamente mensuradas pela representação estética, levando a literatura a fazer eco ao silêncio institucional. Devido o modo como às poucas obras que trataram do tema foram relegadas a uma posição marginal, publicadas por pequenas editoras e ignoradas pela crítica, podemos inferir que a única maneira dessa temática entrar na consciência coletiva é se submetendo a um processo de higienização, se apresentando discretamente em forma de estatísticas e números sem nenhum acompanhamento narrativo e estético, tal como W. G. Sebald expõe, na abertura de sua palestra, a fim de ilustrar a única maneira que essa tragédia costuma ser tratada:
"É certo que consta nos Strategic Bombing surveys dos Aliados, nos levantamento do Departamento Federal Alemão de Estatísticas e em outras fontes oficiais, que apenas a Royal Air Force lançou, em 400 mil voos, 1 milhão de toneladas de bombas sobre a zona inimiga; que, das 131 cidades atingidas – umas só uma vez, outras repetidas vezes - , algumas foram quase totalmente arrasadas; que a guerra aérea deixou em torno de 600 mil vítimas civis na Alemanha; que 3,5 milhões de residências foram destruídas; que, no final da guerra, havia 7,5 milhões de desabrigados; que, em Colônia, a cada habitante correspondiam 31, 4 metros cúbicos de escombros e, em Dresden 42, 8 – mas, mesmo assim, não sabemos o que tudo isso significava de verdade". (SEBALD, 2011, pp. 13-14).   
   
De fato, a mera quantificação da tragédia pouco diz sobre o sofrimento produzido. Ao contrário, apenas o estanca, o encobre como uma camada asséptica. E todos os relatos que se seguiram depois conservam a mesma superficialidade. Até mesmo as vítimas diretas são possuídas por um senso de desinformação, uma incapacidade compreensível de narrar diante do poder aniquilador dos bombardeios, mas que tem a ver em certo sentido com uma cegueira linguística, um instinto prévio de eliminar a experiência traumática da memória. Quanto aos relatos dos que viram de longe, ou do céu, há um consenso visual de comparar o acontecimento a um incêndio gigantesco, visto a quilômetros, e que pela sua dimensão parece estabelecer um fluxo contínuo de fogo entre o céu e a terra. Outras, como o repórter da BBC, que narra de um dos aviões um ataque em tempo real, compara os incêndios constantes “a mais gigantesca exibição de fogos artifícios” ao qual alguém inominável complementa “um show do cacete!”. Todos estes pontos de vista conservam alguma distância que bloqueia a experiência real, o que faz W. G. Sebald sugerir uma interferência artificial, esteticamente programada: 
"Aparentemente ileso, o funcionamento continuado da linguagem normal na maioria dos relatos de testemunhas oculares levanta a dúvida sobre a autenticidade da experiência neles contida. Consumindo dentro de poucas horas todos os seus prédios e árvores, seus moradores, os animais domésticos, os equipamentos e as instalações de toda espécie, a morte pelo fogo de uma cidade inteira tinha que resultar numa sobrecarga e paralisia da capacidade de pensar e de sentir daqueles que conseguiram se salvar. Os relatos de testemunhas individuais têm, portanto, apenas um valor relativo e dependem da complementação por aquilo que se revela a um olhar sinótico, artificial". (SEBALD, 2011, p. 31).  

E no decorrer ainda da sua palestra ilustra, já se valendo de suas qualidades de ficcionista, o que seria a recriação artificial da experiência traumática, de um ponto de vista o mais próximo possível dos que estavam dentro do fogo:
"Dentro de poucos minutos, em toda a área atacada – cerca de vinte quilômetros quadrados – queimavam fogueiras gigantescas que iam se juntando em tal velocidade que, quinze minutos após o lançamento das primeiras bombas, todo o espaço aéreo formava um mar de chamas contínuo, até onde se podia enxergar. E, cinco minutos depois, à 1h 20, se ergueu uma tempestade de fogo com uma intensidade que nenhum ser humano teria imaginado possível até aquele momento. Chamejando por 2 mil metros céu adentro, o fogo arrebatava o oxigênio com tamanha violência que as correntes de ar atingiram a força de um furacão, e trovejavam como órgão poderosos cujos registros tivessem sido acionados ao mesmo tempo. Esse incêndio durou três horas. No seu ponto culminante, a tempestade levantou frontões e telhados de casas, revirou pelo ar vigas e outdoors inteiros, arrancou árvores do solo e açoitou as pessoas em fuga como se fossem tochas vivas. Por trás de fachadas que desmoronavam, as chamas atingiam a altura dos prédios, rolando pelas ruas como uma torrente numa velocidade superior a 150 km/h, e rodopiando em ritmos bizarros pelos espaços abertos, como cilindro de fogo. Em alguns canais a água incandescia. Nos vagões dos bondes, as janelas de vidro derretiam; o estoque de açúcar fervia nos porões das confeitarias. Os que fugiam de seus abrigos caíam em contorções grotescas no asfalto dissolvido, que rompia em volumosas bolhas". (SEBALD, 2011, p.32).

Prosseguindo, Sebald vai transferindo lentamente o foco que passou sobre a incineração da parte física da cidade, para o interior das chamas, para focar o material humano que poucos lembram ao admirar as chamas, os fogos, que estavam lá: 
"Por toda parte havia corpos terrivelmente desfigurados. Em alguns ainda tremulavam as chamas azuladas do fósforo, outros, assados, apresentavam uma cor marrom ou púrpura e tinham minguado a um terço de seu tamanho natural. Jaziam encolhidos nas poças de sua própria gordura já parcialmente resfriado. Em agosto, depois do arrefecimento dos escombros, quando as brigadas de prisioneiros e internos dos campos de concentração puderam dar início aos trabalhos de desobstrução no interior da zona da morte – decretada área interditada logo nos dias seguintes ao ataque - , foram encontradas pessoas que, arrebatadas pelo monóxido de carbono, ainda se encontravam sentadas à mesa ou apoiadas na parede; em outros lugares, havia pedaços de carne e ossos ou montes inteiros de corpos escaldados pela água fervente lançada pelas caldeiras que explodiram. Outros, por sua vez, foram carbonizados e reduzidos a cinzas pela brasa que atingira a temperatura de mais de 1000º C, a tal ponto que os restos mortais de famílias inteiras podiam ser retiradas em um único cesto de roupa". (SEBALD, 2011, pp. 33-34).

A interferência estética como podemos ver acima, de maneira alguma significa criar cenas dramatizadas ou inventar heróis para circularem pelas ruínas com os mesmos sentimentos burgueses de sempre: como já nos acostumamos a ver nos inúmeros filmes ou romances que usam as ruínas como pano de fundo dramático para as velhas histórias de amor. Ficcionalizar, ou cobrir literariamente o espaço catastrófico renegado pela consciência coletiva, também não pode ser confundido com emoldurar o incomensurável com floreios linguísticos, ou inusitadas empreitadas imaginativas, uma vez que Sebald não admite nenhum desvio do olhar, nenhum subterfúgio que possa tornar digerível a experiência traumática. De fato, na sua análise criteriosa que faz das poucas obras que tratam da dizimação das cidades alemãs, vemos abertamente sua preferência para as obras que mantenham um olhar documental. Fazendo jus as testemunhas que por estarem dilaceradas por dentro, não podem testemunhar. Mas pelos resquícios que lhes escapam de um relato, somados aos poucos documentos que cobrem o evento, talvez possa se corrigir o silêncio da histografia alemã, e da nação como um todo, recriando para a nação a cena de sofrimento que ela insiste em apagar. Mas que precisa entrar na consciência, a fim que a angústia reprimida e os mortos eliminados uma segunda vez pelo esquecimento, obtenha, ao desfazer a segunda morte, uma morte humana: única e nomeada. Neste sentido, Sebald ao defender o tom documental, não despreza o estético, mas o pseudoestético, pois como aprendemos com Kafka, a lucidez e a impassibilidade ante ao extremo emocional, gera uma distensão que nos aproxima mais das sensações limites de uma catástrofe. Sebald exige, assim, a mesma adequação estética aos tempos sombrios que Theodor Adorno desenvolve ao longo de sua Teoria Estética (2008). De fato, se tivéssemos que eleger uma estética melancólica, seria a de Adorno. Isso porque ele parece estruturar toda a sua concepção de estética a partir de uma perda, reavaliando as dimensões estéticas como repostas éticas aos extremos da Segunda Guerra Mundial, e por conta disso avalia rigorosamente a postura da Arte, diante de acontecimentos incomensuráveis, como Auschwitz: 
"Adorno tenta pensar juntas as duas exigências paradoxais que são dirigidas à arte depois de Auschwitz: lutar contra o esquecimento e o recalque, isto é, lutar igualmente contra a repetição e pela rememoração; mas não transformar a lembrança do horror em mais um produto cultural a ser  consumido; evitar portanto, que “o princípio de estilização artístico” torne Auschwitz representável, isto é, com sentido, assimilável, digerível, enfim, transforme Auschwitz em  mercadoria que faz sucesso". (GAGNEBIN, 2006, p. 79).

Adorno considera que a estética clássica, tal como a razão iluminista tiveram sua credibilidade suspensas pelo evento incontornável do holocausto. Pois, qualquer posposta abstrata e idealista se torna indecorosa diante do extermínio real, corpóreo, exigindo que a estética também desça ao nível físico e aborde seu objeto concretamente, que se contamine e se integre a ele. A distância neste caso é suprimida. Mas apenas um tipo de distância, aquela que nasceu na renascença e se tonou adulta no iluminismo. Uma outra distância deve ser criada, mas que crie a sensação de uma proximidade intolerável. Adorno sugere que a estética absorva a morte, que use os ingredientes da morte como instrumentos de representação. Diante disso, ficaria mais fácil cogitar a abolição da estética como um todo, pensar que ela se tornou dispensável ante os acontecimentos brutais. Mas Adorno diz exatamente o contrário, o evento extremo convoca uma maior investida estética, pois foi justamente a imobilidade estética e ética dentro da razão automatizada, umas das responsáveis pelo holocausto e todos os outros extermínios anônimos. Por isso, seu sedentarismo deve fornecer lugar a um esforço exaustivo. O mesmo vale ao pensamento, que em vez de se recolher na irracionalidade, deve combater os efeitos da razão automática com mais razão.  O mesmo se aplica a representação, ao realismo, que deve corrigir a cegueira do realismo tradicional sacrificando a sua estabilidade no processo. A melancolia na teoria de Adorno consiste no fato que para ele qualquer esforço, seja do pensamento ou das modalidades estéticas, estaria condenado ao fracasso. Mas não se trata de rendição, e sim do contrário: uma resistência suicida. Estética como resistência não pressupõe um engajamento que usa a literatura para transmitir ideias revolucionárias, mas incorporar o objeto criticado. Proporcionar uma experiência negativa, se tornando o local onde tudo volta acontecer mais uma vez.  A estética como capsula que preserva a experiência negativa, que se metamorfoseia naquilo que rejeita:
"O paradoxo de toda a arte moderna é adquirir ao mesmo tempo o que rejeita, da mesma maneira que no início da Recherche de Proust, com o arranjo elaboradíssimo, introduz no livro sem o ruflar da câmara escura, sem o caleidoscópio do narrador omnisciente: renuncia ao encantamento mágico e só assim o realiza. A experiência estética é a de algo que o espírito não teria nem do mundo nem de si mesmo, a possibilidade prometida pela sua impossibilidade. A arte é a promessa da felicidade que se quebra". (ADORNO, 2008, p. 209).  
Assim, se compreende a preferência de Sebald ao documental no contexto da destruição das cidades alemãs. Pois, entre as descrições feitas por estrangeiros sobre os alemães, o que mais recebeu a atenção foi a maneira impassível dos alemães diante do sofrimento, da capacidade de seguir vivendo naturalmente entre os mortos: como o caso da funcionária de um cinema que se apressava em limpar os escombros antes da próxima sessão, ou das pessoas reunidas tranquilamente para tomar café depois de uma cidade ter sido completamente destruída, algo estranho visto de fora da psicossocial que orienta aquelas pessoas:
"Não se espera que uma colônia de insetos fique paralisada pelo luto diante da destruição de uma colônia vizinha. Da natureza humana, no entanto, espera-se certa dose de empatia. Nesses termos, a manutenção da ordem pequeno-burguesa de seguir tomando café nas sacadas de Hamburgo, no final de julho de 1943, tem algo de absurdo e escandaloso". (SEBALD, 2011, p. 44).  

Assim o tom documental que Sebald recomenda é uma forma de manter o ponto de vista daquilo que se tenta representar, registrar impassivelmente contribui para manter a estranheza inerente à situação extrema. Pois, tanto Benjamin e Adorno acreditam que o objeto deve conservar ao máximo suas singularidades incomensuráveis. Tal como Kafka que alcança um realismo impactante por mimetizar a linguagem da própria vida administrada que criticava, conseguindo assim conservar uma estranheza insolúvel exatamente por apreender o mais singular de sua época. Deste modo, Sebald argumenta “adornianamente” em favor de uma abordagem estética que absorva as demandas éticas daquela situação extrema, neste sentido a narrativa ficcional troca de papel com outros gêneros, a historiografia, por exemplo. Como se ao se esforçar tanto em algo que não lhe pertence, evidenciasse o silêncio de outros gêneros documentais e narrativos, que se omitiram. Tanto que sua simpatia por Kluge acontece por este preencher sua narrativa de relatos, documentos e fotos, Sebald, no fim justifica indiretamente suas preferências estéticas. E ao fazer isso entendemos porque documenta tanto seus relatos. Sebald assim como Adorno sabe que não se pode mais fechar ou apreender algo por meio de um conceito, ou um esquema universal de imagens estéticas, pois, em situações limites tudo escapa para fora dos conceitos e da metáfora. Assim a melhor abordagem seria a que cercasse o máximo possível o objeto que resiste; não para que esse finalmente se entregue, mas para que continue a se mover o mais naturalmente possível, para que seja apreendido ainda vivo. 
Sob esse aspecto, em vez de um conceito, de uma cena dramatizada, monta-se uma constelação de imagens, fotos, depoimentos, pequenos minúcias, como por exemplo, Sebald vê em um relato técnico de um funcionário de um zoológico, suas descrições da imensidade de triplas que escorre dos elefantes cozidos, como uma imagem que montada com outras, nos leva por um deslocamento, ao horror silenciado. E curiosamente essa abordagem pela materialidade, pelo particular só é possível porque “quanto mais proximamente uma rede de definições gerais cobre seus objetos, maior será a tendência dos fatos individuais virem a ser transparências diretas de seus universais, e maior será o resultado que um observador obterá a partir de imersões micrológicas” (ADORNO apud EAGLETON, 1993, p. 251). Não é à toa que W. G. Sebald se identifica tanto com a ideia de Solly Zuckerman, nunca concretizada, de construir uma história natural da destruição. Pois os escombros e as deformações que a guerra provoca na natureza permitem, pela fidelidade às coisas, alcançar o interior humano. A grande vantagem desse método, que já sabemos ser o alegórico, também constitui seu lado mais sombrio, pois este se alimenta das ruínas, e a multiplicação de ruínas comprova que o aparato técnico envolvido na destruição se sustenta por algo irrefreável: 
"A elaboração da estratégia de guerra aérea em sua complexidade gigantesca, a profissionalização das tripulações dos bombardeiros ‘em funcionários especializados na guerra aérea’, a superação do problema psicológico de manter aceso o interesse das tripulações em sua tarefa, apesar do caráter abstrato de sua função, a questão de garantir o curso disciplinado de um ciclo de operações em que ‘duzentos parques industriais de médio porte’ voavam em direção a uma cidade, que técnica usar para que o efeito das bombas acarretasse incêndios de superfície e tempestades de fogo – todos esses aspectos, que Kluge aborda do ponto de vista dos organizadores, permitem reconhecer que o montante de inteligência, capital e força de trabalho envolvidos no planejamento da destruição era de tal ordem que, por conta do potencial acumulado, ele precisava ser executado". (SEBALD, 2011, p. 62). 

Cada vez mais o sopro que infla as asas do anjo sopra mais forte, e diríamos que não há como detê-lo. Mas existe sim sempre a possibilidade de retornar para revirar os escombros que se acumulam. E como já vimos, o melancólico é o indivíduo mais ligado aos objetos rejeitados, o mais ligado ao lado coisal da história. Esse narrador-sucateiro, ou colecionador aparece inúmeras vezes na obra de Walter Benjamin. Ele persegue o rastro da modernidade, e recolhe os dejetos que ficam para trás. Ele vai colhendo o que se solta da tradição, o que sobra dela, pois sabe que a modernidade inevitavelmente despedaçará a tradição. Assim, seu trabalho começa no momento em que a tradição morre. A tradição mantém os objetos dentro de uma unidade e uma funcionalidade. Fora da tradição as coisas são limpas de classificação e também de sua utilidade. E ficam a serviço do colecionador. 
Sebald exemplifica perfeitamente a imagem deste colecionador de ruínas. Sentimentalmente deslocado de seu tempo. E que ler as ruínas inversamente aos entusiastas. Pois para ele elas são vestígios de uma pátria perdida, de seu antigo lar. Há nele uma afetação nostálgica. Mas a nostalgia no caso de Sebald e Benjamin não pode ser interpretada no sentido reacionário ou fascista. Pois não existe nenhuma razão pela qual a nostalgia “consciente de si mesma, uma insatisfação com o presente, lúcida e sem remorsos, fundamentada em alguma plenitude relembrada, não possa fornecer um estímulo revolucionário”. (JAMESON, 1985, p. 69).  É essa insatisfação análoga a melancolia mórbida, patológica, que impede o indivíduo de voltar ao convívio feliz. Pois sabemos, tal como o príncipe Hamlet, que quem está no poder tem as mãos sujas de sangue e, à noite, os fantasmas cercam o reino clamando vingança. Este olhar enlutado cria uma postura interrogativa e desconfiada, pessimista. Tal como a concepção barroca de tempo e história interpretada por Benjamin: 
"Quando, com o drama barroco [ trauerspiel ], a história adentra no palco, ela o faz como escrita. Na face da natureza encontra-se a palavra “história”, com os caracteres da transitoriedade. A fisionomia alegórica da natureza-história, que é posta na cena com o Trauerspiel, é efetivamente presente enquanto ruína. [...] O que encontra-se aí desfeito em escombros, o fragmento altamente significativo: esta é matéria da criação barroca". (BENJAMIN apud SELIGMANN-SILVA, 2001, p. 367).  
             
Neste ponto poderíamos dizer que W. G. Sebald compartilha desta mesma concepção barroca de tempo e história. O homem barroco vê a história como uma grande pilha de cadáver, pois este já não nutre nenhuma fé transcendental, com isso ele se agarra na imanência, na superfície material das coisas, nas ruínas, que é a verdadeira manifestação da história, pois mesura a transitoriedade na gradação física de seu corpo. O narrador sebaldiano também não compartilha da visão transcendental da história. Por isso não celebra o progresso e a modernização impressionante que se seguiu no pós-guerra, pois nada disso trará os mortos novamente. Com isso, Sebald olha o tempo presente e vê nele sempre a marca da destruição: 
"Não sei se insensatamente eu esperava algo especial de Deauville – um resto de passado, alamedas verdes, passeios na praia ou um público mundano ou semimundano; não importa quais eram minhas fantasias, logo vi que essa praia de mar outrora lendária estava implacavelmente decadente, como qualquer outro lugar que se visite hoje, não importa em que parte do mundo ou em que país, arruinada pelo tráfego de carros, pelo comércio de butiques e pelo ímpeto destrutivo que cada vez se espalha mais". (SEBALD, 2002, p.117).
  
Como vemos o narrador se desaponta com a praia de Deauville, por ver nela sinais de decadência. Mas na progressão de sua descrição percebemos que as marcas de decadência na verdade é o que em uma visão capitalista e consumista se chamaria de modernização, pois supostamente o local estaria como uma infraestrutura mais variada de comércio e estaria mais frequentada. Porém, é exatamente essa modernização, interpretada como “ímpeto destrutivo”, que o desagrada. E ao estender este diagnóstico de decadência para todo o resto, o narrador deixa claro que o problema não está em Deuville, mas sim em sua visão de mundo que destoa da concepção geral vigente.  Deste modo, Sebald lê a paisagem criada pela ideologia vigente como ruína. Ele entende que a cultura, o modo de vida, assim como os seus bens culturais também fazem parte do espólio de guerra dos vencedores:
"Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Deve sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo". (BENJAMIN, 1994, p.225). 

Ler a história a contrapelo significa ir contra a corrente do desenvolvimento naturalizado como se seguisse uma ordem divinal e incontestável, isso pressupõe a rejeição dos bens culturais e das ideologias de vidas impostas pelas ideologias vencedoras. Como diz Lowy (2005) comentando o trecho transcrito acima, a revolução não acontecerá graças ao curso “natural das coisas”, pois, “deixada à própria sorte, ou acariciada no sentido do pêlo, a história somente produzirá novas guerras, novas catástrofes, novas formas de barbárie e de opressão.” (p. 74). Neste sentido o fluxo constante da história deve ser interrompido. Pois, a maneira como os fatos são interligados passam a impressão que um acontecimento se liga a outro por um processo automático e mecanicista, encaminhando-se para uma totalidade, tal concepção se embasa em uma noção linear e homogênea de tempo, na qual o passado espera passivamente ser resgatado palmo a palmo. Quando na verdade este passado só existe enquanto resíduos retidos no presente. Assim, os acontecimentos não possuem nada que os liguem intrinsecamente. Um fato histórico importante talvez seja inexpressivo para sua época, ou sua validação seja feita depois. Os heróis podem ser apenas desorientados vitimados pelo acaso, que a posteridade retoma não pelas suas qualidades, mas para projetar nele seus anseios e ideais. Disso, Walter Benjamin defender que o tempo da escrita, o presente, ser o mais importante, pois “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropria-se de uma reminiscência, tal como ela lampeja no momento de um perigo.” (BENJAMIN, 1994, p. 224). Desta forma, os objetos devem ser retirados do molde da linearidade, a qual a tradição e a ideologia dominante os subornou, e mais uma vez a figura do narrador-colecionador mostra-se essencial, pois, “a história repousa numa prática de coleta de informações, de separação e de exposição dos elementos, prática muito mais aparentada àquela do colecionador, figura-chave da filosofia e, também da vida de Benjamin” do que “àquela do historiador no sentido moderno que tenta estabelecer uma relação causal entre os acontecimentos do passado.” (GAGNEBIN, 1999, p. 10).  Com isso, Benjamin defende o salto para fora da história, ou melhor, para fora do discurso nivelador e conformado da tradição. 
Os objetos da história nas mãos do historiador “benjaminiano” tornam-se “brutos”. Ou melhor, o narrador “alegorista-colecionador” cata seus objetos da história, no momento em que estes se tornam inúteis, quando são abandonados pela ideologia que os gerou, passando a valer pelo seu sentido “material”, perdem seu significado para se tornarem significantes. Ou como esclarece Benjamin: 

"Sob a aparência ensimesmada da melancolia, o objeto, uma vez que se torna alegórico, uma vez que a vida correu para fora dele, fica para trás, morto, e no entanto preservado para toda a eternidade; jaz diante do alegorista, completamente entregue a ele, para bem ou para o mal. Em outras palavras, o objeto é doravante incapaz de projetar qualquer significado por conta própria; pode tão-somente assumir aquele significado que o alegorista lhe conferir. Ele o instila com seu próprio significado, ele próprio desce para habitá-lo: e isso deve ser compreendido não psicologicamente, mas num sentido ontológico. Em suas mãos, o objeto em questão torna-se uma outra coisa, fala de outra coisa, passa a ser para ele a chave para alguns domínio de conhecimento abscôndito, ao qual, enquanto emblema deste último, ele presta homenagem. Isto é o que constitui a natureza da alegoria enquanto escrita". (BENJAMIN apud JAMESON, 1985, p. 62).   
            
Neste aspecto, talvez não exista na contemporaneidade escritor de escrita mais alegórica do que W. G. Sebald. Alegórica no sentido esboçado acima, isto é, de se apropriar, pelo viés da melancolia, dos objetos, no momento em que estes perdem quase seu significado para os outros. Tanto que uma das imagens mais recorrente na obra de Sebald contempla sempre uma figura solitária posicionada diante de prédios monumentais, que outrora foram importantes. Mas que agora jazem em ruínas, interessando apenas aos melancólicos. Antes de descrevê-los minuciosamente, Sebald sempre faz questão de contar a trajetória destes, de contextualizá-los em seu esplendor de ocaso, exaurindo destas passagens uma prosa de matizes decadentistas:      
"Segundo ainda consegui descobrir, nos anos cinquenta ou sessenta o Roches Noires cessara suas atividades e fora dividido em apartamentos dos quais só os que tinham vista para o mar foram vendidos. Hoje esse que foi um dia o mais luxuoso hotel da costa normanda é uma monstruosidade monumental, metade já soterrada na areia. A maior parte das moradias está abandonada há muito, mortos os seus donos. Mas algumas damas indestrutíveis ainda continuam vindo todos os verões e são como fantasmas na gigantesca edificação. Por algumas semanas tiram dos móveis os panejamentos brancos que os cobrem, à noite deitam-se quietas como sobre catafalcos em algum lugar no meio daquele vazio, perambulam pelos amplos corredores, atravessam salões imensos, sobem e descem pelas escadarias cheias de ecos botando um pé cuidadosamente diante do outro, e cedo pela manhã levam a passear na calçada seus pequineses e poodles cobertos de feridas". (SEBALD, 2002, p. 119).  

Sebald parece se interessar pelas coisas no momento em que estas se tornam decadentes. É como se seu espírito melancólico buscasse morada em uma paisagem que valida e corporifica sua melancolia. Mas não se trata só disso. As narrativas de Sebald se passam em parte em um contexto histórico remoto, tendo em vista o tempo da escritura, mas mesmo assim não vemos nenhuma tentativa de reconstituição deste passado, o narrador só tem deste passado o que sua erudição permite ter. Mas a certa altura um estranho sopro de nostalgia é ruflada das páginas. E isto acontece porque Sebald, seguindo a técnica alegórica, escolhe um “fragmento altamente significativo” para alcançar um ponto obscuro de determinada época. Sebald se apropria dos objetos esvaziados e desabitados de sentido para homenagear ou evocar uma face esconsa da História. Ou como diria Benjamin, Sebald realiza uma releitura da história, por meio de uma exposição mosaica de ruínas e de fragmentos. Ou ainda, uma constelação, no dizer de Adorno. Neste caso a sensação de completude é evitada para mostrar que algo foge da narrativa ou dos conceitos, ao evitar a totalidade também se evita a ilusão de verdade, o fracasso aqui é acompanhado de uma pequena vitória, que no caso de Sebald se trata da narrativa em si, ou seu incrível esforço de erudição que não raramente o leva a paralisia e exaustão. Não é à toa que seus romances parecem terminar pela metade, às vezes com o narrador em trânsito, no meio de uma avenida. E que as histórias narradas fiquem pela metade. Sebald parece se interessar apenas por narrar uma performance de alguém que se arremessa contra algo impossível: um imenso muro de esquecimento. Ninguém acredita que ele sozinho irá quebrar o concreto com os punhos, mas assistimos inexplicavelmente apreensivos. Disso a inevitável sensação de melancolia. Mas esse mal-estar talvez seja o saldo positivo. Pois como diria Adorno, que Said retoma para seu ensaio “Sobre causas perdidas”, nenhuma causa está realmente perdida desde que o esforço e o ímpeto atinja a sua exaustão: 
"[....] o pensador crítico intransigente, que não sobrescrita sua consciência  nem se permite ser aterrorizado para entrar em ação, é, na verdade, alguém que não desiste. Além disso, pensar não é reprodução espiritual daquilo que existe. Enquanto não é interrompido, o pensamento mantém um controle firme da possibilidade. Sua qualidade insaciável, a resistência a saciedade trivial, rejeita a sabedoria tola da resignação". (apud SAID, 2003, p.299).
   
Ao se manter firme no fracasso, intransigente em sua crítica ao ponto de ir contra o consenso de silêncio, abre um precedente de insurgência, que como um foco viral pode se alastrar rapidamente. Pois a narração ou a cobertura desse pensamento dará uma materialidade a ele, e quando se juntar aos escombros, nada impedirá que alguém se desprenda do cortejo que marcha para o futuro, e na estranha patologia de revirar cacos e ruínas encontre o pensamento, ainda vivo.


O VALE DA DESTRUIÇÃO

Eu andei no vale da morte e só encontrei destruição. A morte perdeu a piedade por nós e nos abandonou para apodrecermos em v...