Dresden, German. |
A estética tem sua origem,
segundo Eagleton (1993), nos sentidos, no corpo. Porém, no século XVIII a razão
tentou mapear a percepção deixando de lado a sensibilidade corporal. Isso
distanciou a estética da vida material, o que talvez tenha criado o equívoco de
que o estético deve recuar diante das coisas concretas e politicamente
delicadas, ou mesmo de catástrofes em que o sofrimento real, fisicamente
incontornável, tornaria a estética uma leviandade intelectual. Porém,
dificilmente, poderíamos conceber a estética fora e distanciada do corpo, com
todas as suas dores e miudezas sensórias. O conceito racional de estética nos
fez acreditar que os sentimentos físicos são um subproduto da percepção. Mas um
conceito que cresce negligenciando a origem mais imediata de todas as
sensações, facilmente assume um aspecto negativamente ideológico, no sentido de
inverter valores, e encobrir a realidade imediata, em vez de mostrá-la, algo
bastante grave, segundo Terry Eagleton: “nada poderia ser mais incapacitante do
que uma racionalidade dirigente incapaz de conhecer o que está além de seus
próprios conceitos; impedida de inquirir sobre a matéria da paixão e da
percepção” (EAGLETON, 1993, p. 17). A racionalidade reificada do Iluminismo
recusava os sentidos, a vida em sua dimensão sensorial, porém, quando precisava
se apropriar de algo pertencente a esse campo, mobilizava a estética, que
servia como uma “subempregada cognitiva” da razão, que colhia e triava os
elementos da matéria bruta da vida, e os entregava à razão, devidamente
purificados e selecionados. Com isso, no século XVIII, a estética estava
submetida a uma racionalidade esvaziada, que se distanciava de suas “raízes
somáticas e perceptuais”, se ocupando apenas de objetos ideais, o belo. Isso
produziu uma cegueira perceptiva, a razão se tornou inócua, culminando no seu
oposto: obscurantismo e autoritarismo.
Assim, a razão universal do
período iluminista pairava acima da sensibilidade e do sujeito, e quando
precisava se comunicar com estes, enviava a estética, que absorvia as demandas
dos sentidos e da história. Recolhia partículas do mundo que deveriam ser plasticamente
incorporadas à razão. Tudo isso, se desenvolvia sob um regime absolutista, em
que o sujeito deveria ser submetido ao coletivo. Em um contexto burguês, a
estética, juntamente com a sensibilidade individual, passa a ocupar uma posição
mais central. Porém, a estética não adentra livremente, sem nenhuma
intermediação ideológica, o campo dos sentidos. Pois, a subjetividade continua
sendo monitorada, e a estética, neste novo contexto, teria a função de
interligar subjetividades particulares em um todo harmônico, ou seja, nas
relações sociais “encontra-se a estética, fonte de toda coesão humana. Se a
sociedade burguesa abandona os sujeitos à sua autonomia solitária, então só
através desta troca ou apropriação imaginativa das identidades uns dos outros, podem
eles ser unidos profundamente” (EAGLETON, 1993, p.25). Os sentimentos, antes
renegados pela razão, passam por meio da estética a garantir a unidade
ideológica, pois a estética faz de uma conduta virtuosa individual um arquétipo
para outros indivíduos, ao compartilhá-la incessantemente por diversos
instrumentos de representação. Possibilitando, com isso, uma ordenação social
mínima, ao produzir constantemente uma projeção empática entre os
sujeitos.
Antes existia uma força racional
absolutista que garantia a unidade social. No contexto burguês, em que a ação
individual é incentivada, a unidade teria que partir de ações individuais. Isso
poderia facilmente produzir o caos. Logo se tem a necessidade de agrupar ações
individuais em modelos que ordenem outros indivíduos. Para tanto, diversas
representações estéticas distribuem no imaginário popular a figura do herói,
que pela força da sua exemplaridade consegue manter a individualidade
controlada. Isso porque o herói e a nação estão relacionados. As ações exemplares
do herói coadunam vontades individuais em um propósito nacionalista. A
estética, diante disso, teria a função de projetar sentimentos exemplares, com
o intento de regular idelogicamente os sujeitos. Hegel em sua Estética defende essa conformidade de intenções
entre a nação e o herói, alegando que as contradições morais do herói épico,
por exemplo, são absolvidas pelo “princípio da necessidade”, com isso, mesmo as
falhas éticas ou violentas do herói podem ser sintetizadas de maneira
afirmativa se a finalidade dessas ações for preservar a unidade nacional:
"[...] indivíduos totais que em si mesmos realizam uma síntese
brilhante dos traços dispersos e dissociados do caráter nacional, o que faz
deles caracteres essencialmente livres, humanamente belos, confere a esses
nobres personagens o direito de figurar num plano superior e impõe-nos o dever
de unir o principal acontecimento à sua individualidade" (HEGEL, 1993, p. 585 apud GINZBURG, 2010, p. 177).
Segundo Jaime Ginzburg (2010)
essa concepção hegeliana de estética legitima a violência ao tentar harmonizar
os interesses nacionalistas com a ação do herói épico, no qual suas ações ficam
justificadas em nome da unidade da forma, ou mesmo da unidade da nação. Assim,
o comportamento cruel do herói quando praticado em defesa do nacionalismo pode
ser interpretado, segundo Hegel, como um exercício de soberania nacional. O
estético em Hegel tenta harmonizar os sentimentos, as ações individuais, com a
razão. Procurando sintetizar “o individualismo cego e o universalismo abstrato”
em uma totalidade. Pois, conforme defende Eagleton, na sociedade burguesa a
força unificadora não pode se apresentar como algo externo e imposto, mas se
manifestar como uma vontade interna:
"Como a obra de arte definida pelo discurso da estética, o
sujeito burguês é autônomo e autodeterminado, não reconhece nenhuma lei
externa, mas, de algum modo misterioso, dá uma lei a si mesmo. Assim fazendo, a
lei torna-se a forma que integra numa unidade harmônica o conteúdo turbulento
de seus desejos e disposições. A compulsão do poder autocrático é substituída
pela compulsão mais gratificante da autoidentidade do sujeito". (EAGLETON, 1993,
p.24).
Ou seja, a sensibilidade, a
subjetividade, os sentimentos, são atualizados por diversas representações
estéticas, que os sujeitos reconhecem como representativas. Com isso, a
liberdade para agir é sutilmente coordenada pela exemplaridade de modelos de
subjetividade, que o indivíduo toma para si. Assim, a autodeterminação já é
previamente determinada. Diante disso, a impressão que fica é que a estética
obedece e serve, de modo incontornável, a uma ideológica dominante. De fato, a
princípio, a estética não pode se colocar acima do contexto social e ideológica
que a concebe. Mas, Theodor W. Adorno (2008) na tentativa de elaborar um
conceito de estética que não seja completamente cúmplice com a barbárie que
acompanha a cultura, defende que a estética deve carregar em si sua própria
negação. Para isso a forma deveria assumir sua incompletude, pois a representação
envolve sempre uma exclusão. Assim, passar a ilusão de harmonia e totalidade,
como a estética hegeliana almejava, é contribuir para uma farsa. Pois a
estética capta apenas uma parte da realidade, porém, se essa parte se expande a
fim de compensar sua parcialidade, invariavelmente uma parte será ilusória. Já
para Adorno, a forma tem que conservar o remorso da sua própria insuficiência,
e por isso, confessar recorrentemente sua precariedade. Com isso, a estética
deve colecionar fragmentos negativos, que quando combinados podem captar e
revelar, parcialmente a realidade, mas nunca se fixando em uma forma harmônica,
conforme esclarece Jaime Ginzburg ao comentar Adorno:
"A inclinação à fragmentação pode encaminhar a forma para um
senso de inconclusão, configurado como má infinitude, em que a atribuição de
sentido para a experiência pode ser sempre precária e incerta. É a melancolia
da forma: os elementos podem se relacionar de múltiplas maneiras entre si e com
o todo, mas não há uma definitiva maneira, nem uma última conclusiva".
(GINZBURG, 2010, p. 186).
A forma deve possuir um elemento
opaco que impeça a sensação de harmonia entre ela e o conteúdo: a realidade, a
cultura. Neste sentido, percebemos uma afinidade com Walter Benjamin, que
semelhantemente vislumbrava uma representação, que pelo filtro da melancolia,
recolhia fragmentos para com eles representar parcialmente a realidade, pois, o
desvio é o único caminho possível para a verdade. A estética, inadvertidamente,
pode criar uma distância. Um sistema completo de representação, coerente e
coeso, pode inserir abstrações em demasia, falseando a realidade. Adorno propõe
a suspensão desta distância por meio de uma atitude mimética radical, de fusão
entre o eu e o objeto estético, suprimindo a distância, suspendendo o conceito.
Igualmente, Benjamin, propõe um mergulho no teor coisal do objeto: “o sonho de
Benjamin é o de uma forma de crítica tão tenazmente imanente que se manteria
completamente imersa no seu objeto” (EAGLETON, 1993, p. 239). Ambos usam a melancolia
como chave, porque a perda, a incompletude passa a incorporar a representação.
A estética, neste sentido, teria
um compromisso de assimilar os objetos, o outro, com toda a sua complexidade e
estranheza, (algo semelhante ao conceito de metamorfose que discutimos no
primeiro capítulo), exercitando a distância estética por meio da ética, pois,
regular a distância significa não tentar idealizar ou mesmo adequar a realidade
a um sistema representacional racional coeso, mas ao contrário, manter as contradições
e diferenças intactas. Para tanto, busca-se apreender o objeto fora de seu
involucro idealizado ou aplainado pela abstração racional. Por isso, imagens
conceituais que privilegiam o contato direto com a parte mais imanente da
realidade, são constantemente requisitadas, dentre elas está o melancólico, que
se aprofunda plenamente na matéria das coisas, que coleciona os restos, os
cacos, que inverte a lógica da autopreservação, se entregando ao que ninguém
mais se interessa, e neste percurso acidental acaba por salvar fragmentos
preciosos para nuançar uma parte não tão requisitada da verdade.
Acreditamos que nos romances Os emigrantes e Austerlitz,
W. G. Sebald consegue ilustrar concretamente as concepções estéticas de Adorno
e Benjamin, criando uma espécie de estética melancólica, que a seguir
tentaremos exemplificar, além de adensar a discussão sobre estética e
melancolia.
MELANCOLIA I: Austerlitz e Aurach no divã
O discurso que o rei Claudio faz a Hamlet para persuadi-lo
a abandonar o luto e seguir em frente, e evidentemente cessar seus
questionamentos em relação à morte do pai, mostra como precocemente Shakespeare
diferenciou luto e melancolia, por mais que em âmbito ficcional e intuitivo:
"Rei - Bela e recomendável atitude que enaltece teus
sentimentos, Hamlet, rendendo a teu pai esse póstumo tributo; mas, deves saber
que teu pai perdeu um pai; que este perdeu, também, o seu e que o sobrevivente
está comprometido, por certo período, à obrigação filial de consagrar-lhe a dor
correspondente; mas perseverar em obstinado luto é conduta de capricho ímpio; é
pesar indigno do homem; mostra uma vontade desrespeitosa ao céu, um coração
débil, uma alma sem resignação, uma inteligência pueril e inculta. Por que,
pois, opor-se com estéril obstinação ao que sabemos tão comum quanto a coisa
mais corriqueira? Lamentável! É um pecado contra o céu, uma ofensa aos mortos,
um delito contra a natureza, o maior absurdo à razão, cujo tema comum é os pais
morrerem antes dos filhos e que, desde o primeiro morto até aquele que hoje
morre, não cessou de exclamar: “Assim deve ser!” Rogamos que jogues no chão
essa dor inútil e considera-nos como se fôssemos teu pai". (SHAKESPEARE, 2005,
pp. 21-22).
Ou seja, o prolongamento do luto se mostra intolerável
porque o enlutado não retoma seu interesse pela vida, não volta às celebrações
da vida, pois sua atenção está com os mortos. No caso de Hamlet seu luto não
cessa, ultrapassando a normalidade, e quando isso acontece já estamos no campo
da melancolia. Obviamente o luto de Hamlet não tem como permanecer na
normalidade devido às condições de sua perda manter uma ambiguidade que refuta
a explicação aparentemente plausível do Rei usurpador, assim a melancolia seria
este luto que não é vencido pela realidade, pelas explicações racionais. Alguns
séculos depois luto e melancolia seriam sistematizados pela psicanálise,
conservando o juízo positivo ao luto normal, e já tratando a melancolia como
patologia. Assim, o luto, como diz Freud (2010), é salutar e necessário para
que os tentáculos da libido se recolham, e aos poucos, tateiem em direção a um
novo objeto libidinal. Movimento este que não se faz sem dor e sofrimento,
visíveis pela apatia em relação ao mundo. Mas por mais difícil que seja aceitar
essa travessia pela dor, o percurso não deve ser encurtado, pois o luto desde
que proporcional à perda é um trabalho essencial para que a ausência do abjeto
amoroso possa ser assimilada. Em comparação com a melancolia o luto compartilha
vários sintomas em comum:
"A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um
abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da
capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, que
se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma
delirante expectativa de punição. Esse quadro se torna mais compreensível para
nós se consideramos que o luto exibe os mesmos traços, com exceção de um: nele
a autoestima não é afetada. De resto é o mesmo quadro". (FREUD, 2010, pp.
172-173).
A única razão para que o luto não seja também considerado
uma patologia é porque ele pode ser explicado, seu motivo é externo e definido
para quem passa por ele, e com o tempo essa compreensão o permite se integrar
novamente à vida. A autoestima se mantém porque o eu visualiza fora dele o
objeto perdido, sua condição de alguém que foi injustiçado pelo acaso lhe
conserva na posição privilegiada de vítima de uma força maior. Além disso, o trabalho
do luto atende a uma programação: a constatação da perda obriga o sujeito
abandonar uma posição libidinal, ele resiste e prolonga por algum tempo essa
ligação por meio da fantasia, da alucinação, até que a realidade gradualmente
substitua o fantasma do objeto de luto, devolvendo novamente o sujeito para uma
posição libidinal. No caso da melancolia essa ligação com objeto perdido não se
desloca para outro porque não se sabe o que realmente se perdeu; então a
programação do luto não se completa.
Freud ressalta ainda que há casos em que o melancólico sabe quem perdeu, mas não o que deste foi perdido. Ou seja, a perda
permanece em um território inconsciente: “isso nos inclinaria a relacionar a
melancolia, de algum modo, a uma perda de objeto subtraída à consciência;
diferentemente do luto, em que nada é inconsciente na perda.” (FREUD, 2010, p.
175). Mas o mais intrigante na melancolia é o rápido desgaste e empobrecimento
do eu. O melancólico ataca constantemente a si mesmo, a perda de amor próprio
leva-o a se considerar impróprio para o amor. Freud defende que mesmo que
aparentemente essa autocrítica impiedosa se mostre injusta, o melancólico não
deve ser desmentido, pois em algum momento essa autodepreciação alcançará o
verdadeiro alvo. Pois ocorre um desdobramento do eu. E uma parte do eu, armada
de uma exigente consciência moral, ataca a outra. Assim, o autoenvilecimento é
discrepante na maioria das vezes, ou senão incompatível com a visão que se tem
desta pessoa, mas para Freud essa discrepância logo se justifica:
"A discrepância mencionada pode ser esclarecida por meio de
uma observação que não é difícil de fazer. Ouvindo com paciência as várias
autoacusações de um melancólico, não conseguimos, afinal, evitar a impressão de
que frequentemente as mais fortes entre elas não se adéquam muito a sua próprio
pessoa, e sim, com pequenas modificações, a uma outra, que o doente ama, amou
ou devia amar".(FREUD, 2010, p. 179).
O melancólico incorpora inconscientemente o objeto da
perda, e ataca a si mesmo a fim de atingir a fonte de sofrimento recalcada:
como se tivesse sido ferido por uma mão invisível que lhe golpeia por dentro.
Um golpe não mortal, que abre uma brecha no corpo para que a morte entre em
gota a gota, não a morte biológica, pois esta naturalmente entra no corpo,
gradativamente desde o nascimento. Mas a morte da consciência. O melancólico
precisa saber o nome de quem ou o que lhe atingiu, mas esta informação está sob
sua consciência, então este começa a destruí-la para alcançar a informação
omitida. O problema do melancólico é que este usa o próprio corpo como munição
contra um inimigo impalpável, como alguém tentando ferir a própria sombra; isso
ocorre porque a energia retirada do objeto da perda não é transferida para um
novo, mas recolhida para o interior do eu, “mas lá ela não encontrou uma
utilização qualquer: serviu para estabelecer uma identificação do eu com o
objeto abandonado” (FREUD, 2010, p. 181). Desta forma, Freud destaca, o eu
crítico se volta contra o eu “modificado pela identificação”. Ao fim, o objeto
perdido pode ser rastreado no inconsciente usando como pistas as autoacusações,
que em parte descreve e acusa objeto libidinal, para assim explicá-lo. Mas há
situações em que a melancolia simplesmente cessa. Isso talvez aconteça
devido ao eu crítico superar ou desistir do objeto amoroso identificado à outra
parte do eu, um desligamento análogo ao luto, que se faz gradualmente, com a
diferença que esse se passa em um nível ambivalente. Pode ocorrer também uma
alternância entre um estado de depressão e outro de mania. Freud conjectura
algumas possibilidades para essa alternância. Uma delas é que a mania seja uma
descompressão, um relaxamento que se sobrepõe a um estado de crispação. Freud
aventa para este estado de mania a hipótese que ao término do investimento
destrutivo, o eu reaja com contra investimentos, a fim de regenerar rapidamente
a imensa ferida aberta. Mas poderíamos complementar dizendo que a própria
ambivalência do objeto põe em concorrência forças que procuram destruí-lo no
interior do eu, com forças que tentam reestabelecer um laço libidinal com este
mesmo objeto.
Hoje a melancolia é tratada como um caso de saúde pública,
devidamente diagnosticada e combatida com drogas específicas. Mas antes de ser
oficialmente uma patologia, ela fez um percurso simbólico, desencadeando
imagens e representações diversas no imaginário coletivo. O conjunto dessas
imagens e representações forma uma estética. Na literatura há representações
clássicas de indivíduos melancólicos, o mais conhecido dele talvez seja o já
citado Hamlet. E existem ao menos duas grandes estilísticas orientadas por ela:
o romantismo e o barroco. Aparentemente a melancolia é identificada a uma
atitude reacionária, pela imobilidade de seus agentes, e pelo seu negativismo
que poderia bloquear de antemão uma atitude proativa. Mas as duas estilísticas
em questão já serviram de base para conceitos que despertaram um grande fluxo
crítico ao pensamento iluminista-racional, que durante muito tempo se manteve
hegemônico. O barroco serviu para Walter Benjamin desenvolver, em Origem do drama trágico alemão, seu conceito de alegoria, dentre
outros, que incentivam a atacar tanto a epistemologia iluminista, ao criticar o
símbolo, quanto o conceito positivo e progressivo de história, ao revelar que
esta é um acúmulo de ruínas e de cadáveres, que não serão redimidos em um fim
transcendente. Assim, resta apenas voltar à imanência, e nela medir
corporeamente o tempo e a história. O romantismo, por sua vez, também foi
reavaliado sob um ponto de vista revolucionário, por Michel Löwy e Robert
Sayre, em Revolta e Melancolia,
ao definirem o romântico como uma vítima da modernidade, que se torna em
seguida seu principal opositor, por ver nela o fim de todos os valores que
poderiam concretizar seu mundo ideal, buscando assim refúgio em um aquém dela,
no passado, ou em um além, projeção para um futuro fantasioso. Enfim, os dois
exemplos mostram como a melancolia pode ser utilizada como uma constante fonte
de questionamento. Isso é compreensível se lembrarmos de que Freud afirma que o
melancólico costuma estender seu forte juízo crítico, sobre si mesmo, para tudo
que o cerca. Com isso, ao combater seu eu, exagerando defeitos e ignorando suas
qualidades, desenvolve uma intolerância moral com ele e com o mundo.
Na teoria da melancolia o caráter positivo e negativo em
torno da melancolia se alterna com as mentalidades. Durante a Idade
Média, por exemplo, era descrita assim:
"A melancolia, ou bílis negra, é aquela cuja desordem pode
provocar as consequências mais nefastas. Na cosmologia humoral medieval,
aparece associada tradicionalmente à terra, ao outono (ou ao inverno), ao
elemento seco, ao frio, à tramontana, à cor preta, à velhice (ou à maturidade),
e o seu planeta é Saturno, entre cujos filhos o melancólico encontra lugar ao
lado do enforcado, do coxo, do camponês, do jogador de azar, do religioso e do
porqueiro. A síndrome fisiológica da abbundantia
melancholia inclui o
enegrecimento da pele, do sangue e da urina, o enrijecimento do pulso, a
ardência do estômago, a flatulência, o arroto ácido, o zumbido na orelha
esquerda, a prisão de ventre ou excesso de fezes, os sonhos macabros e, entre
as enfermidades que podem provocar, figuram a histeria, a demência, a
epilepsia, a lepra, as hemorroidas, as sarnas e mania suicida.
Consequentemente, o temperamento que deriva da sua prevalência no corpo humano
é apresentado sob uma luz sinistra: o melancólico é pexime complexionatus, triste,
invejoso, mau, ávido, fraudulento, temeroso e terroso". (AGAMBEN, 2008,
pp.33-34).
Mas a melancolia tem uma habilidade dialética de se
projetar de sua negatividade aparente para uma postura positiva. Assim, se o
melancólico acumula uma série de características condenáveis, este também é
associado, desde Aristóteles, à sabedoria, à poesia, e ao dom profético. Walter
Benjamin sugere que esta dualidade resulte das ambiguidades das imagens que
costumam representar a melancolia. E cita a própria dualidade da imagem de
saturno: “tal como a melancolia, também Saturno, esse demônio dos contrastes,
investe a alma, por um lado com a indolência e apatia, por outro com a força da
inteligência e da contemplação” e ainda “como ela, também ele ameaça os que lhe
estão sujeitos, por mais distintos que sejam esses espíritos, com os perigos da
hipocondria ou da demência extática” (BENJAMIN, 2011, p. 156). O mesmo ocorre
com outro representante da melancolia, o cão, que tem seu organismo movido pelo
baço e “este órgão, particularmente delicado, se altera, o cão perde a alegria
e fica raivoso. Deste ponto de vista, o cão simboliza o aspecto sombrio da
complexão melancólica”, mas por outro lado “o faro e a resistência do animal
permitiram construir dele a imagem do incansável pesquisador e do pensador
meditativo” (BENJAMIN, 2011, p. 159). Assim, o melancólico tem suas qualidades
retiradas de suas deficiências. Isso fica claro quando vemos que um dos dons
atribuídos ao saturnino, o dom da profecia, sua capacidade visionária, resulta
não de uma ligação sublime com o céu, mas de seu olhar fixado na terra, de sua
limitação imanente. Dessa forma, a melancolia fornece dons que são acompanhadas
de uma maldição, as vitórias são alcançadas depois de intensas derrotas, e na
maioria das vezes são os fracassos do melancólico que ressalta sua
excepcionalidade em relação ao seu tempo.
Esse é o caso das figuras melancólicas presentes nas obras
de W. G. Sebald. De fato, os personagens de Sebald são indivíduos envoltos em
uma tristeza permanente, que tem sua causa encoberta em algum ponto em que a
história do século XX atingiu um ápice catastrófico, e que juntamente com o
recalque histórico que se seguiu logo depois, se subtraiu uma parte do passado
deles, ou mesmo um objeto amoroso (mãe, pai, amantes, pátria, amigos), e com
isso o destino das figuras melancólicas é metonimicamente o do século XX, ou
como diria Coetzee:
"Nos livros de Sebald, as pessoas são na maioria o que só
podemos chamar de melancólicas. O tom de suas vidas é definido por uma sensação
difícil de articular de que não fazem parte do mundo, e de que os seres humanos
em geral talvez não devessem estar aqui. São modestos o suficiente para não
reivindicarem uma sensibilidade sobrenatural às correntes da história – na
verdade tendem a crer que é neles que alguma coisa está errada - , mas o teor
do empreendimento de Sebald é sugerir que suas pessoas são proféticas, muito
embora no mundo moderno o destino do profeta seja permanecer obscuro, sem que
ninguém lhe dê ouvidos". (COETZEE, 2011, p. 181).
Em seguida o diagnóstico que os enquadra perfeitamente na
condição de melancólicos:
"Qual será a base de tanta melancolia? Sebald sugere e torna
a sugerir que são todos prejudicados pelo peso da história recente da Europa,
uma história em que assoma gigantesco o Holocausto. Internamente, sentem-se
dilacerados pelo conflito entre o impulso autoprotetor de manter bloqueado um
passado sofrido e um avanço às cegas em busca de alguma coisa, não sabem bem o
quê, que se perdeu". (COETZEE, 2011, p. 181).
Realmente os personagens na obra de Sebald conservam uma
inextricável relação com a história no que tange a uma parte importante de suas
identidades, como se ao levar em conta que o indivíduo é uma narrativa, os
indivíduos sebaldianos fossem narrativas desprovidas de um começo, e que este
começo foi cortado no momento em que editaram a história. E mais: suas memórias
foram penhoradas para custear o progresso, para patrocinar a superação
surpreendente, porém precoce, de suas nações. O interessante neste caso é
que as pessoas nas narrativas de Sebald sofrem de uma melancolia que, como já
vimos tem como principal sintoma a perda de um objeto indefinido, sabemos
posteriormente que esse objeto foi retirado por uma interferência traumática da
história, mas a própria história também sofre de melancolia e seu objeto
perdido são exatamente os indivíduos que protagonizam as narrativas
sebaldianas, e o cenário em ruínas que os cerca.
Assim, levá-los da melancolia ao luto, ajudá-los a
localizar no inconsciente as memórias interditadas, encontrar seus mortos, é
ajudar, por conseguinte, a História a trazer para a consciência, para a
narrativa oficial os sobreviventes que ela também interditou. E o modo como
Sebald faz isso se assemelha ao método psicanalítico: a cura pela fala, ou
melhor, pelo narrar. E isso é estimulado pelo ouvir paciente do narrador. No
começo todos resistem em falar, pois estão envolvidos pela apatia da
melancolia. São necessárias varias sessões que se distribuem ao longo de
décadas. Talvez as sessões mais demoradas e que mais exigiram tempo de Sebald
sejam os casos de Austerlitz e Aurach.
Austerlitz é o que nutre uma relação mais estreita com a
história. Por ser ele mesmo um historiador. E digamos que esse siga o preceito
benjaminiano do que seria o historiador ideal. Pois este tenta de certa forma
contar a história pelo viés literalmente material, tal como recomenda Benjamin,
ele mergulha no teor coisal. Mas nem todos conseguem fazer esse mergulho,
apenas aquele que carrega a marca da melancolia. Isso porque, como Benjamin
(2011) defende em Origem do
drama trágico alemão, os melancólicos, devido ao medo da traição e da
infidelidade humana, passa a ser cada vez mais fiel às coisas:
"À sua infidelidade aos seres humanos corresponde uma
fidelidade às coisas, que verdadeiramente o mergulha numa entrega
contemplativa. O lugar da concretização adequada do conceito que espelha este
comportamento só pode ser o dessa fidelidade desesperançada ao mundo criatural
e à lei da culpa que governa a sua vida. Todas as decisões essenciais na
relação com os homens podem ofender os princípios da fidelidade, elas regem-se
por leis superiores. Essa fidelidade só está perfeitamente adequada à relação
dos homens com o mundo das coisas. Este apela constantemente para ela, e toda a
promessa e toda a memória em nome da fidelidade rodeia-se de fragmentos do
mundo das coisas como se fossem os seus próprios, como objetos cujas exigências
nunca são excessivas. De forma desajeitada, e mesmo injustiçada, ela proclama a
seu modo uma verdade por amor da qual, de fato, trai o mundo. A melancolia trai
o mundo para servir o saber. Mas o seu persistente alheamento meditativo
absorve na contemplação as coisas mortas, para as poder salvar". (BENJAMIN,
2011, p. 164).
De fato, o melancólico tem uma capacidade excêntrica de
colecionar ou simplesmente acumular objetos em torno de si. Algo que Freud
explica: “deriva do erotismo anal arrancado de seus vínculos e transformado
regressivamente” (FREUD, 2011, p. 185). A posse compensa uma perda ou uma traição,
o medo de perder, ou de empobrecer, do príncipe barroco vem por saber que seu
trono lhe está constantemente ameaçado, e até mesmo o seu poder resultou em
algum momento de uma traição, por isso se agarra aos objetos que o legitimem em
seu poder: a coroa, o cetro, o trono, dentre outras coisas. Para Benjamin esse
acumular cria um saber porque a história só pode ser apreendida em minúcias,
pelas coisas retidas no presente, já que acreditava no valor testemunhal das
coisas. Para ele os objetos mais insignificantes podem acumular o que existiu
de singular de uma época. Pois, o que nos parece mais inútil hoje é porque foi
fruto de uma forma de viver já extinta: seu aspecto prescindível ao presente só
confirma o fato de que ele só poderia pertencer à época que gerou demanda para
sua existência. O motivo de Benjamin acreditar neste poder das coisas de
reter significados históricos singulares deve-se a maneira como reinterpretou o
conceito de infraestrutura e superestrutura de Marx. Tal como destaca Hanna
Arendt em seu texto sobre Walter Benjamin: “o aspecto teórica que acabaria por
fasciná-lo era a doutrina da superestrutura”, porém “o que aí o fascinava era
que o espírito e sua manifestação material estavam tão intimamente ligados que
parecia possível descobrir, em todas as partes, as correspondances de Baudelaire” e “se fossem
adequadamente correlacionadas, se esclareceriam e se iluminariam uma às outras
de modo que, ao final, não mais precisariam de nenhum comentário interpretativo
ou explicativo”. (ARENDT, 2008, p.176). Essa forma direta se associa ao
acontecimento no campo “do espírito” a um fator material, sem intermediários
interpretativos, que provocou a acusação por parte de Adorno a Walter Benjamin
de não ser suficientemente dialético em seu artigo sobre Baudelaire. Mas não
ser dialético era exatamente o que Benjamin pretendia: “tentativa de capturar o
retrato da história nas representações mais insignificantes da realidade, por
assim dizer em suas raspas”. (Apud ARENDT,
p. 176). Benjamin acreditava que a recolagem das “raspas”, dos cacos da
História, sem mediações explicativas, ou causais, tem a ver com a intervenção
alegórica de liberar os objetos históricos do continuum da história a que
tradição os relegou, ou mesmo de “re-significá-los”.
Austerlitz, tal como Benjamin e o príncipe melancólico
barroco, mostra uma grande capacidade de retenção material: “seu escritório
atulhado, que parecia um depósito de livros e papéis e no qual mal havia espaço
para ele próprio, que dirá para os alunos, em meio às pilhas amontoadas no chão
e nas prateleiras” (SEBALD, 2008, p. 36). Além disso, Austerlitz possui uma
teoria que se aproxima da mesma que Benjamin defende em seu projeto mais
audacioso, As passagens:
"Lembro-me até hoje da facilidade com que eu assimilava o
que ele chamava de suas ideias experimentais, quando discorre sobre o estilo
arquitetônico da era capitalista, um assunto do qual se ocupava desde a época
da faculdade, e em particular sobre a mania de ordem e a tendência à
monumentalidade que se manifestavam em cortes de justiça e instituições penais,
em estações de trem e prédios da Bolsa, em teatros líricos e hospícios, e ainda
nas moradias para o operariado construídas segundo padrões ortogonais. Suas
pesquisas, disse-me Austerlitz certa vez, há tempos haviam superado seu
propósito original como projeto de tese de doutorado e derramaram-se, em suas
mãos, numa infinidade de trabalhos preliminares a um estudo, inteiramente
baseado em suas próprias opiniões, sobre a afinidade existente entre todos
esses edifícios. O motivo pelo qual se aventurava em campo tão vasto, disse
Austerlitz, ele não sabia. Provavelmente fora mal aconselhado quando iniciou os
primeiros trabalhos de pesquisa. Mas a verdade era também que até hoje ele
obedecia a um impulso que ele próprio não compreendia, que estava ligado de
algum modo ao fascínio precoce pela ideia de uma estrutura em rede, como, por
exemplo, todo o sistema ferroviário. Já no início dos estudos, disse Austelitz,
e mais tarde, durante sua primeira temporada em Paris, ele costumava visitar
quase que diariamente uma das grandes estações, em geral a Gare du Nord e a
Gare de L’Est, sobretudo de manhã ou à noite, para observar as locomotivos a
vapor que ingressavam no pátio de vidro negro de fuligem ou o suave deslizar
dos misteriosos vagões-leitos, esplendidamente iluminados, que rumavam noite
adentro como navios na imensidão do mar. Não raro ele ficara à mercê das mais
perigosas e para ele totalmente incompreensíveis correntes de emoção nas
estações parisienses, que ele, como dizia, considerava lugares a um só tempo de
felicidade e infelicidade". (SEBALD, 2008, pp. 37-38).
Como vemos a mesma melancolia do recalque é a mesma que
orienta para o lembrar. Seu impulso inconsciente de reter mais do que precisa,
de trair o mundo pelo fascínio às coisas, vai dialeticamente o aproximando de
sua parte perdida, de sua origem. Assim, a tese de interligação, de que tudo se
corresponde, permite o objeto imanente, a estrutura arquitetônica, reter
vestígios de um mundo anímico e emocional, sua obsessão pelos objetos, pelas
estações ferroviárias, provoca seu embarque no trem fantasma, que ronda
insistentemente a consciência fechada, até encontrar uma abertura para sua
volta. Assim, sabemos depois que Austerlitz foi enviado ainda criança em um
trem para fora do extermínio. E que por uma daquelas estações passou seu pai,
já cativo: “e no silêncio incomum que... reinava na Gare d’ Austerlitz” disse
Austerlitz “ocorrera-lhe a ideia de que o pai deixara Paris por aquela estação,
vizinha do seu apartamento na rue Barrault, logo após os alemães entrarem na
cidade” (SEBALD, 2008, p. 279). E examinando a estação, especificamente um
pátio abandonado, mal iluminado e com andaimes parecidos com patíbulo, além de
ganchos e ferro enferrujados que deveria servir para guardar bicicleta, mas que
em vez disso
"quando no domingo pus os pés pela primeira vez nesse
estrado em uma tarde de domingo no meio do período de férias, não se via ali
nenhuma bicicleta, e provavelmente por isso, ou por causa das penas de pomba
espalhadas por todo o soalho de tábuas, fui assaltado pela impressão de que me
encontrava na cena de um crime não expiado". (SEBALD, 2008, p. 281).
Impressão de nenhuma forma implausível, pois como diz
Benjamin (1994): “qualquer pista seguida pelo flâneur vai conduzi-lo a um
crime” (p.39). O flâneur, caminhante que se fascina com detalhes desprezados
pela turba, deambula a esmo, atrás de algo que ainda não sabe bem, é uma das
modalidades de melancólicos. Austerlitz é um flâneur. E sua investigação das
camadas arquitetônicas da cidade lhe faz caminhar pelas camadas de tempos,
retidas no concreto e nos ferros, ao local em que perdeu tudo aquilo que serve
para fixar, mesmo que ideologicamente, uma identidade: um nome, um pai e uma
mãe, um país.
No caso de Aurach o enfrentamento com o indizível se dá
mais frontalmente, talvez por ser um artista, encarna diretamente o dilema de
representar o que está desprovido de qualquer materialidade simbólica. Mas o
processo difícil de falar para compreender, ou mesmo para se permitir o luto,
se passa de maneira semelhante ao de Austerlitz. De fato, há aquela resistência
ao dizer que o tranca no silêncio e no isolamento, neste caso também o sintoma
da melancolia é adiantado na forma: a residência do artista em uma rua
abandonada, em um subúrbio em ruínas, além de seu ateliê como igualmente seu
método materializam a luta travada no inconsciente do melancólico.
O ateliê:
"A escuridão acumulada nos cantos, o reboco de cal inchado
com manchas de sal, e a pintura descascando nas paredes, as prateleiras
cobertas de livros e montes de jornais, as caixas, bancos de oficina e
mesinhas, a bergére, o fogão a gás, o colchão, as desordenadas montanhas de
papel, louça e material, os potes de tinta vermelha, verde-folha e brancos
brilhando na sombra, as chamas azuladas dos dois fornos de parafina, todo o
mobiliário move-se milímetro a milímetro em direção daquele centro onde Aurach
instalou seu cavalete, na claridade cinzenta que entra pela alta janela do
norte, coberta por décadas de poeira. Como aplica grandes quantidades de tinta
e sempre a raspa de novo da tela no curso de seu trabalho, o chão está coberto
por uma massa de vários centímetros de altura já endurecida, com uma crosta, misturada
com pó de carvão e achatada nas beiras, parecendo um rio de lava, que Aurach
diz ser o verdadeiro resultado de seus permanentes esforços e a mais evidente
prova de seu fracasso". (SEBALD, 2002, p. 160).
Acumular coisas é a marca mais visível do melancólico. Pois
sua relação com mundo se dá pelos objetos. Neste caso Aurach adianta
materialmente sua personalidade no espaço em que vive. As coisas desordenadas,
o pó sedimentado, ajudam a compor seu “eu”, e são formas de reter significados
do mundo, pois o melancólico representa o mundo como empilhamento de coisas, e
transmitem sentidos sempre por meio de “ideias espacializadas”, e como já se
disse: sua fidelidade às coisas salva a história. Isso porque as “transações
entre o melancólico e o mundo sempre se dão com coisas” tal como os barrocos e
surrealistas, que ao colecionarem objetos sem utilidade prática, criava uma
nova paisagem material que adiantava pela liberação de energias destrutivas e
mórbidas, o que mundo fabricava secretamente em seu interior. Disso a visão
aguçada para decifrar ou pressagiar do melancólico. Só que aqui o presságio
seria ao contrário: prevê aquilo que já aconteceu, mas que permanece
indecifrável.
O método:
"Na verdade muitas vezes, vendo Aurach trabalhar em um de
seus estudos de retratos semanas a fio, pensei que ele desejava a multiplicação
do pó. Seu jeito de desenhar intenso e devotado, quando em pouco tempo gastava
meia dúzia de bastõezinhos de madeira de salgueiro queimada, esse desenhar e
repassar no papel grosso parecendo couro, bem como o constante apagar do
desenhado com um pano de lã já empapado daquele carvão, era na realidade uma
produção de pó que só se interrompia à noite. Eu sempre me espantava de ver
como pelo fim de um dia de trabalho Aurach montara, com as poucas linhas e
sombras que tinham escapado da aniquilação, um retrato de grande vividez. E
mais me espantava quando na manhã seguinte, assim que o modelo tomara seu lugar
e ele lhe lançara um primeiro olhar, esse retrato era infalivelmente apagado,
para escavar mais uma vez, daquele fundo já bastante prejudicado pelas
constantes destruições, os traços e olhos incompreensíveis como ele dizia de
seu oponente, muitas vezes afetado no processo de trabalho". (SEBALD, 2002, p.
161).
Benjamin diz que o melancólico é indeciso, exatamente por
ver todas as possibilidades se desenrolando simultaneamente. Assim, a criação
se torna um torturante processo de decifração. Aurach não se decide por fixar
um rosto, a repetição e a meticulosidade recusa qualquer produto final, para
ele sua obra de arte é o pó. Nada menos barroco. A poeira é um dos símbolos da
melancolia, assim como a terra. O peso e a lentidão também. Aurach
compulsivamente tenta arrancar uma imagem encoberta, seus retratos são uma
tentativa fracassada de apreender “rostos ancestrais”, olhares soterrados pelo
tempo; seus quadros são palimpsestos deliberados, que tentam desfazer o
palimpsesto que é a memória recalcada. O método de trabalho de Aurach reproduz
a repetição compulsiva da memória tentando se expressar, ou como “afirmou Freud
– na linha de Nietzsche: ‘ o que permaneceu incompreendido retorna; como uma
alma penada, não tem repouso até encontrar resolução e libertação’” (apud SELIGMAN-SILVA, 2005, p. 73). E
essa repetição infinita da cena traumática é que gera a vítima consciente da
sua própria dor, que segundo Aurach são as piores vítimas:
"O horror do sofrimento que, partindo das figuras
apresentadas, impregna toda a natureza para emanar de volta das paisagens
apagadas sobre as figuras humanas dos mortos, agora se agitava em mim, subindo
descendo como as ondas do mar. E paulatinamente, olhando os corpos feridos, os
corpos das testemunhas da execução curvados pelo sofrimento como juncos,
compreendi que em determinado momento a dor anula sua condição de existir que é
a consciência, e com isso talvez – sabemos muito pouco a respeito – anula a si
mesma. Em contrapartida, a dor da alma é praticamente infinita. Quando se
acredita ter chegado à última fronteira, há sempre novos tormentos. A gente cai
de abismo em abismo". (SEBALD, 2002, p.170)
Assim quando os mortos e os vivos se
confundem, quando o sofrimento impregna toda a natureza, sem deixar descanso
aos olhos dos sobreviventes, temos o auge do sofrimento de um genocídio.
Tendemos a contabilizar as tragédias em números, mas há os mortos que não
entram na conta, ou melhor, entram como um saldo positivo, pois a sobrevivência
costuma ser vista como algo heroico. Existe um efeito de irradiação que
continua a mutilar secretamente aqueles que foram feridos pelo testemunho, ou
pela perda, estes herdam a dor dos seus mortos, e esta vem com o invólucro do
absurdo e por isso não pode ser absorvida pela compreensão, então temos a
“compulsão de repetição” no dizer psicanalítico, ou o cair de abismo em abismo
a qual se refere Aurach. Sebald se referiu a isso como a masturbação sem gozo,
um ato vazio que cancela a tranquilidade, pois até a imagem mais terna, quando
repetida de maneira ilógica e infindavelmente, se tornaria incômoda, por isso,
talvez, o suicídio seja praticamente inevitável.
MELANCOLIA II: a estética e o método melancólico.
Depois que conhecemos um pouco de
como a melancolia age no campo individual, e também que sua cura ocorre quando
o objeto da perda é redirecionado para a consciência, para que haja finalmente
o trabalho de luto, tentemos imaginar a melancolia afetando a consciência
coletiva de um país, e se neste caso, a cura ocorre pela fala e pela tentativa
de compreensão, quem falaria em nome da história enferma? E como o objeto da
perda seria representado e devolvido à consciência coletiva? Uma das
respostas para estas questões seria, segundo W. G. Sebald, a literatura.
Algo que vemos defendido e ilustrado em Guerra
aérea e Literatura (2011).
Ensaio no qual W. G. Sebald se ressente do silêncio que se seguiu após a
pulverização das cidades alemãs pelos ataques aéreos dos aliados, que engolfou
as cidades em um imenso incêndio que constantemente aparece, na forma de uma
imagem abrupta, na ficção de Sebald. A prodigiosa recuperação das cidades
bombardeadas poderia até certo ponto ser admirável, se não tivesse resultado de
um imposto mecanismo de recalque, praticado de forma sistemática, e ao custo da
supressão do luto aos mortos emparedados e varridos junto com os escombros.
Assim, a energia e a determinação
alemã para reconstruir as cidades ainda maiores e mais sólidas tiveram como
catalisador “uma fonte puramente imaterial: a corrente de energia psíquica até
hoje não exaurida, cuja fonte é o segredo guardado por todos sobre os cadáveres
amuralhados nos alicerces de nossa entidade estatal” (SEBALD, 2011, p. 21). E
esse acordo tácito de silêncio cria um quadro psíquico melancólico, que pode
ter entre suas principais consequências o retorno sintomático dos fantasmas dos
mortos que não foram devidamente enlutados. Aliás, Sebald parece sugerir
expressamente isso: a vivência do luto, a exposição dos mortos, a tristeza e
apatia dolorosa, são salutares à consciência coletiva.
Mas para Sebald o mais intrigante
é ver esse silêncio e essa autoanestesia alemã alcançarem a literatura. Pois
esta tem um papel essencial para distribuir na consciência coletiva as imagens
subtraídas pela ideologia da superação heroica. Afinal, são raríssimas as obras
que se referem ao tema, e entre as que tratam quase sempre pertencem a autores
estrangeiros, ou alemães há bastante tempo exilados, e assim a recusa de ver e
testemunhar dos alemães “não foi compensado pela literatura do pós-guerra”
reforçando o tabu sobre o tema. E até as exceções, como Heinrich Böll,
mostram-se “previamente sintonizado com a amnésia individual e coletiva, e
guiado, talvez, por processo pré-conscientes de autocensura para o encobrimento
de um mundo que se tornara incompreensível” (SEBALD, 2011, p. 19). Assim, a
destruição material e moral nunca foram completamente mensuradas pela
representação estética, levando a literatura a fazer eco ao silêncio
institucional. Devido o modo como às poucas obras que trataram do tema foram
relegadas a uma posição marginal, publicadas por pequenas editoras e ignoradas
pela crítica, podemos inferir que a única maneira dessa temática entrar na
consciência coletiva é se submetendo a um processo de higienização, se
apresentando discretamente em forma de estatísticas e números sem nenhum
acompanhamento narrativo e estético, tal como W. G. Sebald expõe, na abertura
de sua palestra, a fim de ilustrar a única maneira que essa tragédia costuma
ser tratada:
"É certo que consta nos Strategic
Bombing surveys dos Aliados,
nos levantamento do Departamento Federal Alemão de Estatísticas e em outras
fontes oficiais, que apenas a Royal Air Force lançou, em 400 mil voos, 1 milhão
de toneladas de bombas sobre a zona inimiga; que, das 131 cidades atingidas –
umas só uma vez, outras repetidas vezes - , algumas foram quase totalmente
arrasadas; que a guerra aérea deixou em torno de 600 mil vítimas civis na
Alemanha; que 3,5 milhões de residências foram destruídas; que, no final da
guerra, havia 7,5 milhões de desabrigados; que, em Colônia, a cada habitante
correspondiam 31, 4 metros cúbicos de escombros e, em Dresden 42, 8 – mas,
mesmo assim, não sabemos o que tudo isso significava de verdade". (SEBALD, 2011,
pp. 13-14).
De fato, a mera quantificação da tragédia pouco diz sobre o
sofrimento produzido. Ao contrário, apenas o estanca, o encobre como uma camada
asséptica. E todos os relatos que se seguiram depois conservam a mesma
superficialidade. Até mesmo as vítimas diretas são possuídas por um senso de
desinformação, uma incapacidade compreensível de narrar diante do poder
aniquilador dos bombardeios, mas que tem a ver em certo sentido com uma
cegueira linguística, um instinto prévio de eliminar a experiência traumática
da memória. Quanto aos relatos dos que viram de longe, ou do céu, há um
consenso visual de comparar o acontecimento a um incêndio gigantesco, visto a
quilômetros, e que pela sua dimensão parece estabelecer um fluxo contínuo de
fogo entre o céu e a terra. Outras, como o repórter da BBC, que narra de um dos
aviões um ataque em tempo real, compara os incêndios constantes “a mais
gigantesca exibição de fogos artifícios” ao qual alguém inominável complementa
“um show do cacete!”. Todos estes pontos de vista conservam alguma distância
que bloqueia a experiência real, o que faz W. G. Sebald sugerir uma
interferência artificial, esteticamente programada:
"Aparentemente ileso, o funcionamento continuado da
linguagem normal na maioria dos relatos de testemunhas oculares levanta a dúvida
sobre a autenticidade da experiência neles contida. Consumindo dentro de poucas
horas todos os seus prédios e árvores, seus moradores, os animais domésticos,
os equipamentos e as instalações de toda espécie, a morte pelo fogo de uma
cidade inteira tinha que resultar numa sobrecarga e paralisia da capacidade de
pensar e de sentir daqueles que conseguiram se salvar. Os relatos de
testemunhas individuais têm, portanto, apenas um valor relativo e dependem da
complementação por aquilo que se revela a um olhar sinótico, artificial".
(SEBALD, 2011, p. 31).
E no decorrer ainda da sua palestra ilustra, já se valendo
de suas qualidades de ficcionista, o que seria a recriação artificial da
experiência traumática, de um ponto de vista o mais próximo possível dos que
estavam dentro do fogo:
"Dentro de poucos minutos, em toda a área atacada – cerca de
vinte quilômetros quadrados – queimavam fogueiras gigantescas que iam se
juntando em tal velocidade que, quinze minutos após o lançamento das primeiras
bombas, todo o espaço aéreo formava um mar de chamas contínuo, até onde se
podia enxergar. E, cinco minutos depois, à 1h 20, se ergueu uma tempestade de
fogo com uma intensidade que nenhum ser humano teria imaginado possível até
aquele momento. Chamejando por 2 mil metros céu adentro, o fogo arrebatava o
oxigênio com tamanha violência que as correntes de ar atingiram a força de um
furacão, e trovejavam como órgão poderosos cujos registros tivessem sido
acionados ao mesmo tempo. Esse incêndio durou três horas. No seu ponto culminante,
a tempestade levantou frontões e telhados de casas, revirou pelo ar vigas e
outdoors inteiros, arrancou árvores do solo e açoitou as pessoas em fuga como
se fossem tochas vivas. Por trás de fachadas que desmoronavam, as chamas
atingiam a altura dos prédios, rolando pelas ruas como uma torrente numa
velocidade superior a 150 km/h, e rodopiando em ritmos bizarros pelos espaços
abertos, como cilindro de fogo. Em alguns canais a água incandescia. Nos vagões
dos bondes, as janelas de vidro derretiam; o estoque de açúcar fervia nos
porões das confeitarias. Os que fugiam de seus abrigos caíam em contorções
grotescas no asfalto dissolvido, que rompia em volumosas bolhas". (SEBALD, 2011,
p.32).
Prosseguindo, Sebald vai transferindo lentamente o foco que
passou sobre a incineração da parte física da cidade, para o interior das
chamas, para focar o material humano que poucos lembram ao admirar as chamas,
os fogos, que estavam lá:
"Por toda parte havia corpos terrivelmente desfigurados. Em
alguns ainda tremulavam as chamas azuladas do fósforo, outros, assados,
apresentavam uma cor marrom ou púrpura e tinham minguado a um terço de seu
tamanho natural. Jaziam encolhidos nas poças de sua própria gordura já
parcialmente resfriado. Em agosto, depois do arrefecimento dos escombros,
quando as brigadas de prisioneiros e internos dos campos de concentração
puderam dar início aos trabalhos de desobstrução no interior da zona da morte –
decretada área interditada logo nos dias seguintes ao ataque - , foram
encontradas pessoas que, arrebatadas pelo monóxido de carbono, ainda se
encontravam sentadas à mesa ou apoiadas na parede; em outros lugares, havia
pedaços de carne e ossos ou montes inteiros de corpos escaldados pela água
fervente lançada pelas caldeiras que explodiram. Outros, por sua vez, foram
carbonizados e reduzidos a cinzas pela brasa que atingira a temperatura de mais
de 1000º C, a tal ponto que os restos mortais de famílias inteiras podiam ser
retiradas em um único cesto de roupa". (SEBALD, 2011, pp. 33-34).
A interferência estética como podemos ver acima, de maneira
alguma significa criar cenas dramatizadas ou inventar heróis para circularem
pelas ruínas com os mesmos sentimentos burgueses de sempre: como já nos
acostumamos a ver nos inúmeros filmes ou romances que usam as ruínas como pano
de fundo dramático para as velhas histórias de amor. Ficcionalizar, ou cobrir
literariamente o espaço catastrófico renegado pela consciência coletiva, também
não pode ser confundido com emoldurar o incomensurável com floreios linguísticos,
ou inusitadas empreitadas imaginativas, uma vez que Sebald não admite nenhum
desvio do olhar, nenhum subterfúgio que possa tornar digerível a experiência
traumática. De fato, na sua análise criteriosa que faz das poucas obras que
tratam da dizimação das cidades alemãs, vemos abertamente sua preferência para
as obras que mantenham um olhar documental. Fazendo jus as testemunhas que por
estarem dilaceradas por dentro, não podem testemunhar. Mas pelos resquícios que
lhes escapam de um relato, somados aos poucos documentos que cobrem o evento,
talvez possa se corrigir o silêncio da histografia alemã, e da nação como um
todo, recriando para a nação a cena de sofrimento que ela insiste em apagar.
Mas que precisa entrar na consciência, a fim que a angústia reprimida e os
mortos eliminados uma segunda vez pelo esquecimento, obtenha, ao desfazer a
segunda morte, uma morte humana: única e nomeada. Neste sentido, Sebald ao
defender o tom documental, não despreza o estético, mas o pseudoestético, pois
como aprendemos com Kafka, a lucidez e a impassibilidade ante ao extremo
emocional, gera uma distensão que nos aproxima mais das sensações limites de
uma catástrofe. Sebald exige, assim, a mesma adequação estética aos tempos
sombrios que Theodor Adorno desenvolve ao longo de sua Teoria Estética (2008). De fato, se tivéssemos que
eleger uma estética melancólica, seria a de Adorno. Isso porque ele parece
estruturar toda a sua concepção de estética a partir de uma perda, reavaliando
as dimensões estéticas como repostas éticas aos extremos da Segunda Guerra
Mundial, e por conta disso avalia rigorosamente a postura da Arte, diante de
acontecimentos incomensuráveis, como Auschwitz:
"Adorno tenta pensar juntas as duas exigências paradoxais
que são dirigidas à arte depois de Auschwitz: lutar contra o esquecimento e o
recalque, isto é, lutar igualmente contra a repetição e pela rememoração; mas
não transformar a lembrança do horror em mais um produto cultural a ser
consumido; evitar portanto, que “o princípio de estilização artístico” torne
Auschwitz representável, isto é, com sentido, assimilável, digerível, enfim,
transforme Auschwitz em mercadoria que faz sucesso". (GAGNEBIN, 2006, p.
79).
Adorno considera que a estética clássica, tal como a razão
iluminista tiveram sua credibilidade suspensas pelo evento incontornável do
holocausto. Pois, qualquer posposta abstrata e idealista se torna indecorosa
diante do extermínio real, corpóreo, exigindo que a estética também desça ao
nível físico e aborde seu objeto concretamente, que se contamine e se integre a
ele. A distância neste caso é suprimida. Mas apenas um tipo de distância,
aquela que nasceu na renascença e se tonou adulta no iluminismo. Uma outra
distância deve ser criada, mas que crie a sensação de uma proximidade intolerável.
Adorno sugere que a estética absorva a morte, que use os ingredientes da morte
como instrumentos de representação. Diante disso, ficaria mais fácil cogitar a
abolição da estética como um todo, pensar que ela se tornou dispensável ante os
acontecimentos brutais. Mas Adorno diz exatamente o contrário, o evento extremo
convoca uma maior investida estética, pois foi justamente a imobilidade
estética e ética dentro da razão automatizada, umas das responsáveis pelo
holocausto e todos os outros extermínios anônimos. Por isso, seu sedentarismo
deve fornecer lugar a um esforço exaustivo. O mesmo vale ao pensamento, que em
vez de se recolher na irracionalidade, deve combater os efeitos da razão
automática com mais razão. O mesmo se aplica a representação, ao
realismo, que deve corrigir a cegueira do realismo tradicional sacrificando a
sua estabilidade no processo. A melancolia na teoria de Adorno consiste no fato
que para ele qualquer esforço, seja do pensamento ou das modalidades estéticas,
estaria condenado ao fracasso. Mas não se trata de rendição, e sim do
contrário: uma resistência suicida. Estética como resistência não pressupõe um
engajamento que usa a literatura para transmitir ideias revolucionárias, mas
incorporar o objeto criticado. Proporcionar uma experiência negativa, se
tornando o local onde tudo volta acontecer mais uma vez. A estética como
capsula que preserva a experiência negativa, que se metamorfoseia naquilo que
rejeita:
"O paradoxo de toda a arte moderna é adquirir ao mesmo tempo
o que rejeita, da mesma maneira que no início da Recherche de Proust, com o arranjo
elaboradíssimo, introduz no livro sem o ruflar da câmara escura, sem o
caleidoscópio do narrador omnisciente: renuncia ao encantamento mágico e só
assim o realiza. A experiência estética é a de algo que o espírito não teria
nem do mundo nem de si mesmo, a possibilidade prometida pela sua
impossibilidade. A arte é a promessa da felicidade que se quebra". (ADORNO,
2008, p. 209).
Assim, se compreende a preferência de Sebald ao documental
no contexto da destruição das cidades alemãs. Pois, entre as descrições feitas
por estrangeiros sobre os alemães, o que mais recebeu a atenção foi a maneira
impassível dos alemães diante do sofrimento, da capacidade de seguir vivendo
naturalmente entre os mortos: como o caso da funcionária de um cinema que se
apressava em limpar os escombros antes da próxima sessão, ou das pessoas
reunidas tranquilamente para tomar café depois de uma cidade ter sido
completamente destruída, algo estranho visto de fora da psicossocial que
orienta aquelas pessoas:
"Não se espera que uma colônia de insetos fique paralisada
pelo luto diante da destruição de uma colônia vizinha. Da natureza humana, no
entanto, espera-se certa dose de empatia. Nesses termos, a manutenção da ordem
pequeno-burguesa de seguir tomando café nas sacadas de Hamburgo, no final de
julho de 1943, tem algo de absurdo e escandaloso". (SEBALD, 2011, p. 44).
Assim o tom documental que Sebald recomenda é uma forma de
manter o ponto de vista daquilo que se tenta representar, registrar
impassivelmente contribui para manter a estranheza inerente à situação extrema.
Pois, tanto Benjamin e Adorno acreditam que o objeto deve conservar ao máximo
suas singularidades incomensuráveis. Tal como Kafka que alcança um realismo
impactante por mimetizar a linguagem da própria vida administrada que
criticava, conseguindo assim conservar uma estranheza insolúvel exatamente por
apreender o mais singular de sua época. Deste modo, Sebald argumenta
“adornianamente” em favor de uma abordagem estética que absorva as demandas
éticas daquela situação extrema, neste sentido a narrativa ficcional troca de
papel com outros gêneros, a historiografia, por exemplo. Como se ao se esforçar
tanto em algo que não lhe pertence, evidenciasse o silêncio de outros gêneros
documentais e narrativos, que se omitiram. Tanto que sua simpatia por Kluge
acontece por este preencher sua narrativa de relatos, documentos e fotos,
Sebald, no fim justifica indiretamente suas preferências estéticas. E ao fazer
isso entendemos porque documenta tanto seus relatos. Sebald assim como Adorno
sabe que não se pode mais fechar ou apreender algo por meio de um conceito, ou
um esquema universal de imagens estéticas, pois, em situações limites tudo
escapa para fora dos conceitos e da metáfora. Assim a melhor abordagem seria a
que cercasse o máximo possível o objeto que resiste; não para que esse
finalmente se entregue, mas para que continue a se mover o mais naturalmente possível,
para que seja apreendido ainda vivo.
Sob esse aspecto, em vez de um conceito, de uma cena
dramatizada, monta-se uma constelação de imagens, fotos, depoimentos, pequenos
minúcias, como por exemplo, Sebald vê em um relato técnico de um funcionário de
um zoológico, suas descrições da imensidade de triplas que escorre dos
elefantes cozidos, como uma imagem que montada com outras, nos leva por um
deslocamento, ao horror silenciado. E curiosamente essa abordagem pela
materialidade, pelo particular só é possível porque “quanto mais proximamente
uma rede de definições gerais cobre seus objetos, maior será a tendência dos
fatos individuais virem a ser transparências diretas de seus universais, e
maior será o resultado que um observador obterá a partir de imersões
micrológicas” (ADORNO apud EAGLETON, 1993, p. 251). Não é à toa que W. G.
Sebald se identifica tanto com a ideia de Solly Zuckerman, nunca concretizada,
de construir uma história natural da destruição. Pois os escombros e as
deformações que a guerra provoca na natureza permitem, pela fidelidade às
coisas, alcançar o interior humano. A grande vantagem desse método, que já
sabemos ser o alegórico, também constitui seu lado mais sombrio, pois este se
alimenta das ruínas, e a multiplicação de ruínas comprova que o aparato técnico
envolvido na destruição se sustenta por algo irrefreável:
"A elaboração da estratégia de guerra aérea em sua
complexidade gigantesca, a profissionalização das tripulações dos bombardeiros
‘em funcionários especializados na guerra aérea’, a superação do problema
psicológico de manter aceso o interesse das tripulações em sua tarefa, apesar
do caráter abstrato de sua função, a questão de garantir o curso disciplinado
de um ciclo de operações em que ‘duzentos parques industriais de médio porte’
voavam em direção a uma cidade, que técnica usar para que o efeito das bombas
acarretasse incêndios de superfície e tempestades de fogo – todos esses
aspectos, que Kluge aborda do ponto de vista dos organizadores, permitem
reconhecer que o montante de inteligência, capital e força de trabalho
envolvidos no planejamento da destruição era de tal ordem que, por conta do
potencial acumulado, ele precisava ser executado". (SEBALD, 2011, p. 62).
Cada vez mais o sopro que infla as asas do anjo sopra mais
forte, e diríamos que não há como detê-lo. Mas existe sim sempre a
possibilidade de retornar para revirar os escombros que se acumulam. E como já
vimos, o melancólico é o indivíduo mais ligado aos objetos rejeitados, o mais
ligado ao lado coisal da história. Esse narrador-sucateiro, ou colecionador
aparece inúmeras vezes na obra de Walter Benjamin. Ele persegue o rastro da
modernidade, e recolhe os dejetos que ficam para trás. Ele vai colhendo o que
se solta da tradição, o que sobra dela, pois sabe que a modernidade
inevitavelmente despedaçará a tradição. Assim, seu trabalho começa no momento
em que a tradição morre. A tradição mantém os objetos dentro de uma unidade e
uma funcionalidade. Fora da tradição as coisas são limpas de classificação e
também de sua utilidade. E ficam a serviço do colecionador.
Sebald exemplifica perfeitamente a imagem deste
colecionador de ruínas. Sentimentalmente deslocado de seu tempo. E que ler as
ruínas inversamente aos entusiastas. Pois para ele elas são vestígios de uma pátria
perdida, de seu antigo lar. Há nele uma afetação nostálgica. Mas a nostalgia no
caso de Sebald e Benjamin não pode ser interpretada no sentido reacionário ou
fascista. Pois não existe nenhuma razão pela qual a nostalgia “consciente de si
mesma, uma insatisfação com o presente, lúcida e sem remorsos, fundamentada em
alguma plenitude relembrada, não possa fornecer um estímulo revolucionário”.
(JAMESON, 1985, p. 69). É essa insatisfação análoga a melancolia mórbida,
patológica, que impede o indivíduo de voltar ao convívio feliz. Pois sabemos,
tal como o príncipe Hamlet, que quem está no poder tem as mãos sujas de sangue
e, à noite, os fantasmas cercam o reino clamando vingança. Este olhar enlutado
cria uma postura interrogativa e desconfiada, pessimista. Tal como a concepção
barroca de tempo e história interpretada por Benjamin:
"Quando, com o drama barroco [ trauerspiel ], a história
adentra no palco, ela o faz como escrita. Na face da natureza encontra-se a
palavra “história”, com os caracteres da transitoriedade. A fisionomia
alegórica da natureza-história, que é posta na cena com o Trauerspiel, é efetivamente presente enquanto
ruína. [...] O que encontra-se aí desfeito em escombros, o fragmento altamente
significativo: esta é matéria da criação barroca". (BENJAMIN apud
SELIGMANN-SILVA, 2001, p. 367).
Neste ponto poderíamos dizer que W. G. Sebald compartilha
desta mesma concepção barroca de tempo e história. O homem barroco vê a
história como uma grande pilha de cadáver, pois este já não nutre nenhuma fé
transcendental, com isso ele se agarra na imanência, na superfície material das
coisas, nas ruínas, que é a verdadeira manifestação da história, pois mesura a
transitoriedade na gradação física de seu corpo. O narrador sebaldiano também
não compartilha da visão transcendental da história. Por isso não celebra o
progresso e a modernização impressionante que se seguiu no pós-guerra, pois
nada disso trará os mortos novamente. Com isso, Sebald olha o tempo presente e
vê nele sempre a marca da destruição:
"Não sei se insensatamente eu esperava algo especial de
Deauville – um resto de passado, alamedas verdes, passeios na praia ou um
público mundano ou semimundano; não importa quais eram minhas fantasias, logo
vi que essa praia de mar outrora lendária estava implacavelmente decadente,
como qualquer outro lugar que se visite hoje, não importa em que parte do mundo
ou em que país, arruinada pelo tráfego de carros, pelo comércio de butiques e
pelo ímpeto destrutivo que cada vez se espalha mais". (SEBALD, 2002, p.117).
Como vemos o narrador se desaponta com a praia de
Deauville, por ver nela sinais de decadência. Mas na progressão de sua
descrição percebemos que as marcas de decadência na verdade é o que em uma
visão capitalista e consumista se chamaria de modernização, pois supostamente o
local estaria como uma infraestrutura mais variada de comércio e estaria mais
frequentada. Porém, é exatamente essa modernização, interpretada como “ímpeto
destrutivo”, que o desagrada. E ao estender este diagnóstico de decadência para
todo o resto, o narrador deixa claro que o problema não está em Deuville, mas
sim em sua visão de mundo que destoa da concepção geral vigente. Deste
modo, Sebald lê a paisagem criada pela ideologia vigente como ruína. Ele
entende que a cultura, o modo de vida, assim como os seus bens culturais também
fazem parte do espólio de guerra dos vencedores:
"Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses
despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista os contempla com
distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a
qual ele não pode refletir sem horror. Deve sua existência não somente ao
esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus
contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um
monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie não o
é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do
possível o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar
a história a contrapelo". (BENJAMIN, 1994, p.225).
Ler a história a contrapelo significa ir contra a corrente
do desenvolvimento naturalizado como se seguisse uma ordem divinal e
incontestável, isso pressupõe a rejeição dos bens culturais e das ideologias de
vidas impostas pelas ideologias vencedoras. Como diz Lowy (2005) comentando o
trecho transcrito acima, a revolução não acontecerá graças ao curso “natural
das coisas”, pois, “deixada à própria sorte, ou acariciada no sentido do pêlo,
a história somente produzirá novas guerras, novas catástrofes, novas formas de
barbárie e de opressão.” (p. 74). Neste sentido o fluxo constante da história
deve ser interrompido. Pois, a maneira como os fatos são interligados passam a
impressão que um acontecimento se liga a outro por um processo automático e
mecanicista, encaminhando-se para uma totalidade, tal concepção se embasa em
uma noção linear e homogênea de tempo, na qual o passado espera passivamente
ser resgatado palmo a palmo. Quando na verdade este passado só existe enquanto
resíduos retidos no presente. Assim, os acontecimentos não possuem nada que os
liguem intrinsecamente. Um fato histórico importante talvez seja inexpressivo
para sua época, ou sua validação seja feita depois. Os heróis podem ser apenas
desorientados vitimados pelo acaso, que a posteridade retoma não pelas suas
qualidades, mas para projetar nele seus anseios e ideais. Disso, Walter
Benjamin defender que o tempo da escrita, o presente, ser o mais importante,
pois “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de
fato foi”. Significa apropria-se de uma reminiscência, tal como ela lampeja no
momento de um perigo.” (BENJAMIN, 1994, p. 224). Desta forma, os objetos devem
ser retirados do molde da linearidade, a qual a tradição e a ideologia
dominante os subornou, e mais uma vez a figura do narrador-colecionador
mostra-se essencial, pois, “a história repousa numa prática de coleta de
informações, de separação e de exposição dos elementos, prática muito mais
aparentada àquela do colecionador, figura-chave da filosofia e, também da vida
de Benjamin” do que “àquela do historiador no sentido moderno que tenta
estabelecer uma relação causal entre os acontecimentos do passado.” (GAGNEBIN,
1999, p. 10). Com isso, Benjamin defende o salto para fora da história,
ou melhor, para fora do discurso nivelador e conformado da tradição.
Os objetos da história nas mãos do historiador
“benjaminiano” tornam-se “brutos”. Ou melhor, o narrador
“alegorista-colecionador” cata seus objetos da história, no momento em que
estes se tornam inúteis, quando são abandonados pela ideologia que os gerou,
passando a valer pelo seu sentido “material”, perdem seu significado para se
tornarem significantes. Ou como esclarece Benjamin:
"Sob a aparência ensimesmada da melancolia, o objeto, uma
vez que se torna alegórico, uma vez que a vida correu para fora dele, fica para
trás, morto, e no entanto preservado para toda a eternidade; jaz diante do
alegorista, completamente entregue a ele, para bem ou para o mal. Em outras
palavras, o objeto é doravante incapaz de projetar qualquer significado por
conta própria; pode tão-somente assumir aquele significado que o alegorista lhe
conferir. Ele o instila com seu próprio significado, ele próprio desce para
habitá-lo: e isso deve ser compreendido não psicologicamente, mas num sentido
ontológico. Em suas mãos, o objeto em questão torna-se uma outra coisa, fala de
outra coisa, passa a ser para ele a chave para alguns domínio de conhecimento
abscôndito, ao qual, enquanto emblema deste último, ele presta homenagem. Isto
é o que constitui a natureza da alegoria enquanto escrita". (BENJAMIN apud JAMESON, 1985, p. 62).
Neste aspecto, talvez não exista na contemporaneidade
escritor de escrita mais alegórica do que W. G. Sebald. Alegórica no sentido
esboçado acima, isto é, de se apropriar, pelo viés da melancolia, dos objetos,
no momento em que estes perdem quase seu significado para os outros. Tanto que
uma das imagens mais recorrente na obra de Sebald contempla sempre uma figura
solitária posicionada diante de prédios monumentais, que outrora foram
importantes. Mas que agora jazem em ruínas, interessando apenas aos
melancólicos. Antes de descrevê-los minuciosamente, Sebald sempre faz questão
de contar a trajetória destes, de contextualizá-los em seu esplendor de ocaso,
exaurindo destas passagens uma prosa de matizes
decadentistas:
"Segundo ainda consegui descobrir, nos anos cinquenta ou
sessenta o Roches Noires cessara suas atividades e fora dividido em
apartamentos dos quais só os que tinham vista para o mar foram vendidos. Hoje
esse que foi um dia o mais luxuoso hotel da costa normanda é uma monstruosidade
monumental, metade já soterrada na areia. A maior parte das moradias está
abandonada há muito, mortos os seus donos. Mas algumas damas indestrutíveis
ainda continuam vindo todos os verões e são como fantasmas na gigantesca
edificação. Por algumas semanas tiram dos móveis os panejamentos brancos que os
cobrem, à noite deitam-se quietas como sobre catafalcos em algum lugar no meio
daquele vazio, perambulam pelos amplos corredores, atravessam salões imensos,
sobem e descem pelas escadarias cheias de ecos botando um pé cuidadosamente
diante do outro, e cedo pela manhã levam a passear na calçada seus pequineses e
poodles cobertos de feridas". (SEBALD, 2002, p. 119).
Sebald parece se interessar pelas
coisas no momento em que estas se tornam decadentes. É como se seu espírito
melancólico buscasse morada em uma paisagem que valida e corporifica sua
melancolia. Mas não se trata só disso. As narrativas de Sebald se passam em
parte em um contexto histórico remoto, tendo em vista o tempo da escritura, mas
mesmo assim não vemos nenhuma tentativa de reconstituição deste passado, o
narrador só tem deste passado o que sua erudição permite ter. Mas a certa
altura um estranho sopro de nostalgia é ruflada das páginas. E isto acontece
porque Sebald, seguindo a técnica alegórica, escolhe um “fragmento altamente
significativo” para alcançar um ponto obscuro de determinada época. Sebald se
apropria dos objetos esvaziados e desabitados de sentido para homenagear ou
evocar uma face esconsa da História. Ou como diria Benjamin, Sebald realiza uma
releitura da história, por meio de uma exposição mosaica de ruínas e de fragmentos.
Ou ainda, uma constelação, no dizer de Adorno. Neste caso a sensação de
completude é evitada para mostrar que algo foge da narrativa ou dos conceitos,
ao evitar a totalidade também se evita a ilusão de verdade, o fracasso aqui é
acompanhado de uma pequena vitória, que no caso de Sebald se trata da narrativa
em si, ou seu incrível esforço de erudição que não raramente o leva a paralisia
e exaustão. Não é à toa que seus romances parecem terminar pela metade, às
vezes com o narrador em trânsito, no meio de uma avenida. E que as histórias
narradas fiquem pela metade. Sebald parece se interessar apenas por narrar uma performance de alguém que se arremessa contra algo
impossível: um imenso muro de esquecimento. Ninguém acredita que ele sozinho
irá quebrar o concreto com os punhos, mas assistimos inexplicavelmente
apreensivos. Disso a inevitável sensação de melancolia. Mas esse mal-estar
talvez seja o saldo positivo. Pois como diria Adorno, que Said retoma para seu
ensaio “Sobre causas perdidas”, nenhuma causa está realmente perdida desde que
o esforço e o ímpeto atinja a sua exaustão:
"[....] o pensador crítico intransigente, que não
sobrescrita sua consciência nem se permite ser aterrorizado para entrar
em ação, é, na verdade, alguém que não desiste. Além disso, pensar não é
reprodução espiritual daquilo que existe. Enquanto não é interrompido, o
pensamento mantém um controle firme da possibilidade. Sua qualidade insaciável,
a resistência a saciedade trivial, rejeita a sabedoria tola da resignação". (apud SAID, 2003, p.299).
Ao se manter firme no fracasso, intransigente em sua
crítica ao ponto de ir contra o consenso de silêncio, abre um precedente de
insurgência, que como um foco viral pode se alastrar rapidamente. Pois a
narração ou a cobertura desse pensamento dará uma materialidade a ele, e quando
se juntar aos escombros, nada impedirá que alguém se desprenda do cortejo que
marcha para o futuro, e na estranha patologia de revirar cacos e ruínas
encontre o pensamento, ainda vivo.